Entre tantas recomendações para lidar com a ansiedade em meio a uma quarentena que parece interminável, uma me chamou especial atenção: escrever um diário.
Mesmo sendo algo que não faço desde a adolescência, fiquei com vontade de registrar reflexões sobre o viver nesses tempos tão complexos. Só que o Dia 1 não dá pra falar só sobre o dia 13 de abril, que chamei de Dia 1 apenas porque resolvi começar hoje o diário.
Esse período tem sido um tempo precioso para pensar e repensar tudo, absolutamente tudo. Por isso, este é para mim o Diário do Fim do Mundo, pelo menos do mundo tal qual o conhecia e sabia, mesmo que mal e porcamente, como lidar.
Já perdi a conta de quantos dias estou confinado, o que não seria assim tão difícil descobrir, mas prefiro não saber, nesse caso e no do placar de mortes pelo Covid-19. Assim, sinto menos a sensação de que vivo como um condenado à espera da notícia do dia de sua sentença final.
Apesar de ter a liberdade limitada, não me sinto nem um pouco preso. Nunca minha imaginação esteve tão aguçada e livre para me levar pra onde eu quiser. E nos primeiros dias, ela me levou para alguns lugares ruins, lugares povoados pelo medo e pela desesperança. Ela tinha fome de tragédia e as redes sociais se incumbiram de alimentá-la até não dar mais.
Às notícias sobre o avanço da tragédia viral sobre a humanidade, vieram somar outros dois fatos: minha sogra ficou seriamente doente e eu recebi um diagnóstico que me deixou apavorado.
Primeiro, minha sogra.
Era para ser um procedimento relativamente simples, cujo preparo parecia ser o único incômodo. Exame de colonoscopia. Só que, para ser concluído, o exame precisou de algo que o médico que o realizou chamou de manobra. Uma pressão sobre o abdômen para permitir a passagem do instrumento até o final do intestino levou a uma intercorrência: aspiração de suco gástrico para o pulmão. Resultado: inflamação imediata, que acabou produzindo uma pneumonia e, depois de quase 1 mês de sofrimento, a morte.
Agora, eu.
Exames de rotina identificaram um pequeno tumor em minha tireóide. Como ele estava crescendo, mesmo que vagarosamente, minha médica resolveu solicitar uma avaliação anatomopatológica. E o safadinho, com apenas 6 mm, se mostrou um cabra do mal. Mal do tipo que a maioria não gosta nem de pronunciar. Na melhor das hipóteses, identifica apenas por CA. Acontece que, exatos 25 anos atrás, minha mãe, com exatamente a minha idade, também recebeu um diagnóstico de CA. E, mesmo que o da minha mãe, desde o primeiro momento, tenha sido um CA do tipo rápido e incurável, e o meu do tipo lento e curável, minha cabeça deu várias voltas no mundo e rebobinou a fita da minha vida vezes sem fim. Até que, depois de realizar todos os exames preparatórios, voltei ao cirurgião para agendar a retirada parcial ou total – só na hora mesmo dá para saber – da minha tireóide. E, bem, a cirurgia é de baixíssimo risco, disse ele, só que, por causa do vírus, ela se torna perigosa. Resultado: decidimos adiá-la por mais 3 meses.
Corta para alguns minutos depois.
Tive uma crise de pânico. Minhas mãos tremeram, senti meus músculos se enrijecerem, a boca travar. Vontade imensa de chorar até secar, mas as lágrimas ali suspensas à espera de não sei o quê. Não foi a primeira crise. A última veio lentamente dois anos atrás, quando não consegui lidar com o suicídio da tia que me tratava como a um filho desde que minha mãe se foi. E desta vez, como da outra, procurei um psiquiatra amigo da família. Só que desta vez, ao contrário da outra, não saí de lá medicado, mas com um plano de trabalho que previa descanso, meditação e este diário.
Essa conversa com o psiquiatra me trouxe até aqui, até este momento. E, enquanto minha cirurgia não rola, decidi que não vou ficar parado. Amanhã início um tratamento alternativo com um hematologista e oncologista indicado por um amigo com um CA muito pior do que o meu e que se mostra empolgadíssimos com os resultados preliminares. Já fucei o Linkedin do médico, ele é tipo o doutor pica das galáxias e tratamentos alternativos de câncer. Vai custar uma grana preta. MAS É MINHA SAÚDE, CARALHO!
De vez em quando, falar gritando faz bem.
Eu, que aprendi desde cedo que, antes de mim, preciso cuidar dos outros, decidi ser um pouco egoísta e cuidar de mim de verdade. A família, os amigos, o trabalho podem esperar. Eu não posso e não vou.
Parece que esperei minha vida toda por esse momento e não vou perdê-lo agora, de jeito nenhum.