Mortes e renascimentos na quarentena

segunda-feira, 10 agosto 2020, 11:06 | | Comentários desativados em Mortes e renascimentos na quarentena
Postado por Fábio Betti 

Era uma vez um dente, uma pedra e uma glândula.

O dente teve uma raiz fraturada e foi condenado. Precisou ser extraído. Foi guerreiro. Deu um trabalho danado. Enquanto a dentista se contorcia para arrancá-lo, fiquei meditando. Fechei os olhos e imaginei que o dente era uma folha se desprendendo de uma árvore. E ele ficou lá preso a mim por outras duas raízes que não queriam se soltar. Até que finalmente se entregou e desapareceu de minha vida para sempre.

A pedra resolveu se mexer e, ao se deslocar no rim direito, gerou a dor das dores, a maior que já senti na vida. Achei que fosse morrer. Precisei me concentrar na respiração para não desmaiar. Pelo que li e ouvi sobre trabalho de parto, eu ousaria dizer que foi mais ou menos o que vivi. E olha que já tive seguramente mais de dez cólicas renais. Não é que perdi a conta. Prefiro não contá-las, pois é o tipo de lembrança que não vale a pena guardar. Também não guardo as pedras que consegui expelir – ou que foram arrancadas, como essa, que ficou parada no início do ureter, há mais de 15 centímetros da bexiga e precisou ser retirada à força numa cirurgia de emergência.

A glândula. Nenhum problema com seu funcionamento. Ela seguiria firme e forte produzindo os hormônios T3 e T4 e, dessa forma, regulando a função de órgãos importantes como o coração, o cérebro, o fígado e os rins e atuando diretamente no peso, na memória, na concentração, no humor e no controle emocional. Isso, se não fosse um pequeno nódulo de menos de 1 centímetro que surgiu em seu lóbulo direito e, devidamente investigado, se revelou um carcinoma papilífero.

Desde que fui diagnosticado, no início da quarentena, ouvi de médicos e muitas pessoas a minha volta que, se é para ter uma câncer, que seja um câncer de tireóide. Câncer de tireóide se resolve com a extração da tireóide e um tratamento normalmente de poucos dias à base de iodo radioativo – e, claro, a reposição hormonal, que é ajustada de acordo com o funcionamento metabólico de cada pessoa. A extração, eu já fiz. Foi relativamente rápida, com um pós-operatório indolor. Aliás, diferentemente do molar e da pedra nos rins, em nenhum momento o tumor me provocou qualquer dor. Ele estava lá em seu crescimento lento e contínuo e, se não fosse um check-up de rotina, teria ficado assim por muito mais tempo. Talvez tivesse se espalhado ou criado metástases, o que, por sorte, não aconteceu.

Recebi alta do hospital no dia seguinte à cirurgia. Um dos médicos que me operou contou que a tireóide é a primeira glândula a se formar em nosso corpo, na quarta semana de gestação. Ela é uma espécie de mãe de todas as glândulas e garante o equilíbrio do organismo. Fica abaixo do Pomo de Adão e tem a forma de uma borboleta.

Borboletas são para mim o símbolo supremo da transformação. Não é simplesmente uma mudança de estado ou uma melhoria incremental. As asas não crescem na larva. A larva tem que morrer para que a borboleta possa nascer. Na verdade, ela se liquefaz completamente para que algo novo emerja. E, assim, de um ser rastejante e fisicamente pouco atraente, surge outro cheio de cores e, o mais incrível, com o poder de voar.

Se a larva ou a borboleta pudesse descrever esse processo, o que ela diria? Há alguma consciência? É dolorido? Dá medo? A larva faz ideia no que vai se transformar? A borboleta sabe de onde ela veio?

Perguntas que me faço enquanto me enluto pela morte da tireóide, que, diferentemente do cálculo renal e do molar condenado, é uma morte sem dor física, um estranho sentir num nível que não é experimentado pelo corpo.

Orientado por um amigo que pratica meditação há bastante tempo, quando entrei no centro cirúrgico me imaginei boiando num rio em direção ao mar. Esta foi a última imagem que me lembro antes de acordar de novo. Acordar sem minha glândula mãe e com uma sensação difícil de explicar de que algo novo nasceu e é tão novo que ainda não tem nem nome.

Enquanto tudo isso foi – segue sendo – vivido por mim nesta quarentena, me pergunto também sobre as mortes e renascimentos pelas quais as outras pessoas estão passando. Serão conscientes? Dói nelas? Elas fazem ideia no que vão se transformar? Sabem de onde vieram? Procuro – e nem sempre consigo – ser empático com essas outras pessoas, as que conheço e as que não conheço, reconhecendo que não há dor maior ou menor. A dor que cada um está vivendo nesta quarentena por algo que morreu, está morrendo ou ainda irá morrer só pode ser julgada por cada um que a vive.

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