O sonho do rio

terça-feira, 11 agosto 2020, 10:48 | | Comentários desativados em O sonho do rio
Postado por Fábio Betti 

Era uma vez a história de um rio que veio ao mundo como uma gota que sonhava em ir para o mar.

Certo dia uma gota brotou da terra dura. E outra. E outra. Então o que era só uma gota agora era uma pequena poça.

A poça se formou num berço cercado de pedras por todos os lados. E ali ela ficou pelo que pareceu uma eternidade. Acolhida, protegida, sustentada pelas rochas altas e imponentes.

Enquanto isso, da terra dura seguiam brotando gotas. Uma atrás da outra. A que chegava se somava rapidamente às que já estavam e, juntas, viviam serenas e tranquilas na poça. Que se alargava lenta e continuamente.

Até que um dia qualquer, uma gota rolou sozinha sobre uma pedra e desapareceu de vista. E a poça se deu conta de que as rochas já não eram mais intransponíveis. Em pouco tempo, ela já podia inclusive vislumbrar o que havia do outro lado. E tudo o que ela via eram pedras e mais pedras.

A poça agora era um pequeno regato, que brotava da terra, gota a gota, fazia a poça transbordar e escorria entre as pedras sem pressa e sem esforço.

Cada rocha encontrada no caminho era um convite para o regato se recolher e formar mais uma poça, uma estratégia que ele aprendeu sem pensar e seguia praticando por puro instinto. Com a poça crescida, de repente uma gota ousava superar a rocha e desaparecer do outro lado.

E assim o regato se transformou num pequeno rio, onde insetos, aves e outros animais iam se nutrir ou simplesmente se refrescar. Em seu caminho, além das pedras, surgiram terras de muitas cores e texturas e lindas e diversas vegetações que enfeitavam suas margens e derramavam as folhas e frutos sobre ele.

O frio intenso fazia-o recolher-se e transformar-se por algum tempo também em rocha. Já o calor permitia que ele pudesse voar e experimentar ser também nuvem e depois chuva e rio de novo.

O rio foi crescendo, crescendo, foi alargando suas margens e, quando encontrava pedras no caminho, nem precisava mais virar poça para seguir adiante.

Quando ele se via do alto na forma de nuvem, sua visão não alcançava mais sua origem, nem era capaz de dizer a ele para onde ia.

Muito distante de sua nascente, tanto no tempo quanto no espaço, o rio já não se lembrava de que era gota e, sem saber o seu destino, começava a se perguntar sobre o seu propósito.

Para que seguir adiante? Qual o sentido de virar gelo? Por que transformar-se em nuvem e voltar de novo ao rio como chuva?

Enquanto o rio se fazia essas perguntas, percebeu suas águas ficarem agitadas. O terreno íngreme e a tempestade que caia o acelerava de tal maneira que ele ia levando tudo a sua frente. Pedras, galhos, troncos, árvores inteiras eram carregadas por suas águas turbulentas.

O rio sentia uma força estranha, descomunal, que tanto o encantava quanto o amedrontava.

Sem saber o que se passava com ele, pela primeira vez em sua vida teve medo. Medo de si mesmo. Medo de seu poder destrutivo. E tentou se conter de todas as formas. Se jogando na direção das rochas mais altas, de morros gigantes e até da floresta. Mas nada o detinha. Não importa para onde ele se virava, o rio seguia cada vez mais forte e caudaloso.

Até que de repente o silêncio. O rio se viu por um instante imóvel, suspenso no ar, estupefato diante da imagem de um oceano sem fim a sua frente.

Se o rio pudesse ouvir os místicos que algumas vezes iam meditar em suas margens e mergulhavam em si mesmos e no todo enquanto suas águas corriam sinuosas, ele saberia que teve um lampejo de iluminação, uma revelação. Mas como ele era apenas um rio, tudo o que conseguia era se encantar profundamente com a visão daquele oceano azul de infinita proporção e rara beleza.

No instante seguinte, veio a queda. E um estrondo ensurdecedor que acabou repentinamente com todo o encantamento. O rio foi caindo, caindo e caindo e bateu forte na terra dura, desfazendo-se numa imensa nuvem de vapor.

Quando finalmente conseguiu recuperar o fôlego, o rio olhou para cima e viu a mais bela linda cachoeira de que já havia sido desde que sua primeira gota brotou da terra dura. Por sobre ela, os raios de sol formavam um lindo arco íris.

Do outro lado do arco íris, um lindo e sereno lago de águas cristalinas espelhando o céu azul. Um lago circulado pelas montanhas mais altas que ele já tinha visto até então.

E atrás das montanhas o oceano para o qual ele agora sabe que um dia finalmente irá voltar.

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