A vida nos é dada, mas não nos é dada feita*

quarta-feira, 12 agosto 2020, 09:08 | | Comentários desativados em A vida nos é dada, mas não nos é dada feita*
Postado por Fábio Betti 

Há muito, muito tempo: meu primeiro dia na escolinha. Tinha algo entre 2 e 3 anos de idade. A lembrança deste dia se mistura com minha própria memória e as histórias que meus pais me contavam. Eu chorava. Muito. Mas muito. E a cara de preocupação de minha mãe só reforçava o sentimento de abandono. Eu nunca mais iria vê-la. Seria o fim para nós e, a partir daquele momento, eu precisaria dar conta de mim sozinho para todo o sempre.

Quatro anos atrás: meu filho mais velho entrou na universidade. Uma universidade em outra cidade. Era um sábado quente de verão. Minha esposa e eu o acompanhamos em sua nova moradia: um pequeno quarto num prédio só de estudantes. Ajudamos com o transporte e a acomodação dos poucos móveis que comporiam o seu novo lar a partir daquele momento. Quando voltamos para nossa casa no campo, há 40 minutos de onde ele estava e onde passaríamos o fim de semana antes de voltar para São Paulo, resolvemos entrar na piscina. Era um fim de tarde maravilhoso. Choramos abraçados. Em silêncio.

O que há de comum nessas duas situações?

Primeiro que são momentos de inflexão, de ruptura, de uma mudança drástica na vida. A criança que vai pela primeira vez à escola e o casal de adultos que se despede do filho que vai morar sozinho têm razão: daquele momento em diante tudo seria mesmo diferente. E nós, como seres vivos, não gostamos de rupturas. Somos seres evolutivos. Mudanças nos assustam, nos levam a um lugar muito antigo em nossa memória ancestral, onde as mudanças eram de fato uma questão de vida ou morte. Ou migrávamos ou morríamos de fome. Ou encontrávamos uma caverna para nos esconder ou seríamos devorados. Tudo isso está lá, escondido em nossa memória, pronto para ser disparado assim que algo que nos remeta a esses tempos soe como semelhante.

Segundo que, por causa do primeiro, nos iludimos, na medida em que todos sabemos: o primeiro dia de aula não é o momento onde somos abandonados pelos pais a nossa própria sorte ou o filho que vai estudar em outra cidade não desaparecerá para sempre de nossas vidas. Isso é tão óbvio, né? E, mesmo assim, vivemos dentro de nós uma dor que denominamos facilmente de morte. Algo morreu naquela criança em seu primeiro dia de aula. Algo morreu nos pais quando o filho foi viver sua vida fora do ninho.

E, definitivamente, não estamos preparados para isso: a morte. Nem para a Morte, nem para as pequenas mortes do cotidiano. O fim de uma relação amorosa, a mudança de emprego, a perda de liberdade na pandemia. Qualquer frustração pode ser encarada da mesma maneira, como uma morte. Não aconteceu de acordo com a expectativa, o plano não deu certo, o sonho não se concretizou? A sensação é a mesma: morte.

E quando nossa memória ancestral vem com tudo nessas horas, o que fazemos?  Nos entregamos a ela! Porque esse é o instinto: reagir imediatamente a algo que nos ameace, reagir sem pensar.

Há algo a fazer para evitarmos esse mecanismo? A resposta, infelizmente, é não. Esse processo de reagir ao que nos ameaça de modo automático é da nossa natureza, não temos como evitá-lo.

Mas será que podemos viver um outro tipo de experiência nessas situações onde nos sentimos ameaçados? Nesse caso, a resposta, felizmente, é sim.  

Certa vez, fizeram ao Dalai Lama a pergunta que eu sempre quis fazer a ele, que, na grande maioria das vezes, aparece sempre com um semblante tranquilo e sorridente:

– Você nunca tem raiva?

– Raiva? Tenho muita! Mas passa rápido.

Por que a raiva, o medo, o sofrimento passam rápido para algumas pessoas, enquanto que em outras esses sentimentos parecem morar nelas para sempre? Me faço essa pergunta já há muitos anos, pois, como ainda estou vivo, sigo sentindo tudo isso.


Quando percebo sentimentos que afetam negativamente minha saúde presos a mim, dominando a minha razão, paralisando o meu viver, me incomodo, às vezes, me desespero, culpo deus e o mundo. Por que isso agora? E por que comigo? Sinto-me absolutamente sozinho nesse lugar tão ruim. A depressão inclusive já me visitou nessas ocasiões, tamanho é o poder que esses sentimentos exercem sobre mim.

Exceto quando não.

Explico.

O Dalai. Por que ele é diferente de mim? Por que ele é diferente de você?

Como já deu para perceber, sou uma pessoa que gosta de perguntas. Só que aprendi que as melhores respostas não estão nos outros ou nos livros. Aprendi observando o Dalai e muitos outros mestres que as respostas estão em mim mesmo. Eu objeto de estudo sendo observado por eu pesquisador.

Transforma-te em quem és, diz o mestre. O Dalai é diferente porque ele sabe disso e faz da sua vida um permanente objeto de estudo. A serviço do que? Da evolução. Como budista, ele acredita que estamos aqui todos para evoluir e que a consciência sobre o que nos passa a cada instante nos dá informação para permitirmos que a vida siga o seu fluxo, ou seja, evolua. A evolução é o propósito biológico de tudo o que é vivo. Maturana, o biólogo, fala a mesma coisa. Mas prefiro falar como Fábio, o ser humano. Baseado no estudo de mim mesmo, nas vezes em que me vi arrebatado por um sentimento que me levou a um lugar ruim e como, quando eu consegui parar para respirar e pensar, fui capaz de sair desse lugar do passado – o medo ancestral da morte – ou do futuro – expectativas que nunca se cumprem – e olhar para a vida que me foi dada de uma maneira nova, como o presente que de fato é.

 “Como a vida nos é dada, mas não nos é dada feita”, escreve o filósofo Gilberto Kujawski em seu delicioso livro-ensaio O Sentido da Vida, “temos que fazê-la nós mesmos”. E a melhor forma de fazer a nossa vida, digo eu mesmo, é parando de vez em quando para pensar se o que estamos vivendo é o passado, com sua história e seus gatilhos ancestrais, o futuro, com seus sonhos e expectativas que nunca se cumprem, ou o momento presente, único tempo onde é possível estar vivo de verdade, com todos os seus desafios, seus aprendizados, perdas e ganhos, dores e amores.

*Citação de Gilberto Kujawski, em “O Sentido da Vida”

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