Estou morando no campo desde o início da quarentena. Vinte anos atrás construímos uma casa que sempre usamos como casa de veraneio e que, de repente, surge ressignificada como nossa atual moradia. Em breve, com a volta às aulas presenciais, meus filhos retornarão para suas vidas de estudantes universitários, minha esposa já retomou seu trabalho presencial em São Paulo permanecendo lá por alguns dias na semana, mas eu me sinto cada dia mais pertencente a este lugar. Não é exatamente o lugar, mas o fato de estar longe do barulho e da poluição, da agitação frenética e de todo o pacote que vem com uma grande cidade parece que me ajudou numa reaproximação ao que tenho de mais valioso e do qual não posso simplesmente abrir mão.
O trabalho dignifica o Homem. Diz o ditado. O trabalho distrai o Homem. Digo eu. O trabalho nos faz sentirmo-nos ocupados. Na sociedade em que vivemos, esta foi a moeda de troca que inventamos para poder adquirir as coisas que precisamos – e as que não precisamos também – para viver. Trocamos nosso tempo por dinheiro, reconhecimento e sentido. De todo modo, o trabalho também funciona como uma distração potente. Obviamente, não só ele.
Muitas coisas nos distraem. Especialmente, a rua da qual tanto sentimos falta nesta quarentena. A rua tão cheia de vida, com seus ruídos, seus cheiros, suas imagens. Nossos sentidos são incapazes de absorver tudo o que ela nos oferece. Mas só conseguimos perceber isso de verdade quando ela desaparece. É na falta da rua que percebemos a rua.
Quando vemos a rua da janela de nossas casas, podemos ver mais claramente tudo o que é a rua. Tudo o que nos atrai. E o que nos distrai também. A mim, quando me afasto da rua, o que mais me atrai na rua é a liberdade. A possibilidade de ir para onde quiser, como e quando quiser. Liberdade que é um direito, inclusive, garantido em nossa Constituição.
Com a liberdade de ir e vir momentaneamente suspensa, também desaparecem as distrações que a rua oferece o tempo todo, os infinitos estímulos que me fazem caminhar sem perceber onde piso ou por quem e por onde passo. Os sentidos sempre voando de um lugar a outro de modo tão rápido que a maior parte das informações que a rua tem a oferecer me escapam. E, mesmo assim, a rua me faz falta.
Sem a rua, ainda resta o trabalho, a família, a casa. Tudo num único lugar, o que se transforma num tremendo desafio. Onde começa um e termina o outro? E, sem perceber, lá estamos nós outra vez 100% ocupados com o trabalho, com a família e com a casa. Distraídos. Distraídos do que? De nós mesmos.
Desperdiçamos a oportunidade que a perda momentânea da liberdade de ir e vir nos ofereceu para exercitar a liberdade de ser e estar. De olhar para si mesmo e se perguntar: Quem sou eu? Quem sou eu de verdade? Quem sou eu quando não ando distraído por aí? O que me inspira? O que me causa medo? O que quero? O que não quero?
No “Conto da Ilha Desconhecida”, Saramago lembra que é necessário sair da ilha para ver a ilha, que não nos vemos se não saímos de nós. Adoraria que o “novo normal” a que tantas pessoas se referem fosse esse lugar onde, privados de tantas distrações, aprendêssemos a olhar para nós mesmos, atraídos pelo que de fato somos quando, isolados socialmente do resto do mundo, estamos a sós com o único ser que jamais poderíamos deixar de dar atenção e para a qual inevitavelmente voltaremos quando não existir mais nada para nos distrair