De vez em quando, me pego comemorando intimamente a desgraça alheia. A do sujeito que posa como a última bolacha do pacote ou que destila ódio em 9 a cada 10 coisas que diz ou que simplesmente descrevo como um oponente a quem quero ver derrotado, prostrado na lona. Dentro de mim, de repente emergem duas palavras repetidas silenciosamente como um mantra: bem feito, bem feito, bem feito. Quem nunca, né? Bem feito! Foi merecido!
Seria interessante se algum instituto de pesquisas pudesse mapear o percentual de pessoas que já celebraram alguma vez a desgraça de alguém, mesmo que às escondidas. Aposto que, na hipótese de os respondentes serem honestos, chegaríamos bem perto dos 100%. É da natureza humana, alguém há de dizer. Não sou um profundo conhecedor da natureza humana para afirmar tal coisa, mas tenho procurado me conhecer o máximo possível e diria que tal comportamento me parece muito mais cultural do que natural.
Basta observar crianças pequenas interagindo. Mesmo que, em algumas ocasiões, ocorram disputas, especialmente na fase da formação do ego, entre dois e quatro anos de idade, nunca vi uma criança celebrando quando outra se machuca ou chora. Pelo contrário, o mais natural é que, basta que uma comece a chorar para que se dê início a uma verdadeira sinfonia.
Mas minha observação pode, claro, estar enviesada. Por isso, gosto de me consultar com quem faz desse tipo de observação seu ofício. É o caso do biólogo chileno Humberto Maturana, um dos maiores pesquisadores da evolução humana depois de Darwin e com quem tive o privilégio de estudar por alguns anos. Então, vou me permitir recorrer a um especialista para tentar explicar por que eu, um adulto de meia idade, ou seja, alguém que já deveria ter abandonado a fase do egocentrismo há uns 50 anos, ainda vibra por dentro com a desgraça alheia.
Antes de mais nada, é importante entender que a competição não é um fenômeno natural. Tanto é que se dois animais se encontram diante de um alimento e apenas um deles o come, isso não é competição. Não é, porque não é essencial, para o que acontece com o que come, que o outro não coma. Nesse aspecto, Maturana brinca que a leoa não compete com a gazela. Está apenas atrás de uma boa refeição.
A competição igualmente não é parte da natureza humana. Pelo contrário, o que torna possível o surgimento do ser humano é o amor. Quando Maturana fala do amor, não está falando do amor romântico, usualmente baseado em projeções e expectativas de lado a lado, mas da emoção que constitui o domínio de condutas em que se dá a operacionalidade da aceitação do outro como legítimo outro na convivência. Criando um espaço de interações recorrentes, no qual se abre um espaço de convivência, o amor permite a constituição da linguagem, que, basicamente, é o que funda o humano. Sem amor, não existiria a linguagem. Sem linguagem, não existiria o humano.
Se, ao invés do amor, o que se manifestasse fosse a competição, eu não estaria aqui para contar essa história, nem você para lê-la.
Parece complicado, mas mais uma vez deixemos os estudiosos de lado um pouco para voltarmos a nós observadores de nosso próprio viver. Um bebê só é capaz de apreender a linguagem e, portanto, se desenvolver como um ser humano saudável na existência de um espaço onde as interações aconteçam a partir de uma emoção que permita que ele possa ser aceito e respeitado na convivência com os que o cercam, especialmente, sua mãe e demais cuidadores. E que emoção é esta? O amor.
Isso quer dizer que a competição não nos é dada, mas ensinada. Aprendemos a competir para nos adequar a uma cultura que evoluiu em torno da ideia de que para eu sobreviver, é essencial que o outro morra. Isso começou num passado remoto, para citar Yuval Harari, outro biológo que nos presenteou com a obra fundamental para o entendimento de nossa espécie, o livro Homo Sapiens. Segundo Harari, a competição começou quando de caçadores e coletores, nos transformamos em pastores e agricultores, colocando uma cerca entre os que têm direito a se alimentar e os que não têm. À época, este foi um salto evolutivo fundamental, uma resposta inteligente à enorme dificuldade de encontrar alimento e à necessidade de fixarmos residência, para procriarmos e nos defendermos de inimigos naturais com maior eficácia. O conceito de propriedade privada basicamente permitiu que o ser humano se tornasse a espécie predominante na Terra.
A questão é que não vivemos mais numa era de escassez de alimentos. Pelo contrário, sobram alimentos. Só que eles não chegam a todas as pessoas. Estima-se que a cada 4 segundos uma pessoa morra de fome no mundo. Isso significa que, enquanto você lia este texto, umas 30 pessoas morreram. De fome.
Celebrar a desgraça alheia é parte do mesmo mindset que mata pessoas de fome: uma forma de pensar que nos foi ensinada e que nos fez acreditar que para podermos viver o outro tem que morrer. Primeira constatação: isso não é verdade! Segunda: se isso nos foi ensinado, podemos escolher, a partir da nova consciência que temos agora, ensinar a nós mesmos e aos outros uma nova lição: a competição não faz parte da nossa natureza; ela nos foi útil para enfrentar um período de enorme escassez de alimentos, que já não é mais real; não é natural que desejemos que o outro se dê mal; o amor é a emoção que nos permitiu existirmos como seres humanos e, portanto, é ele que pode nos resgatar da jornada perigosa que estamos percorrendo em direção à barbárie.
* O título deste artigo foi inspirado numa frase que li do filósofo Artur Schopenhauer que diz o seguinte: “A única alegria do rebanho é quando o lobo come a ovelha do lado.”