Quem gosta de fotografar e parte para câmeras profissionais, acabará também por investir em um conjunto de lentes que, invariavelmente, vão se orientar em duas direções: as que aproximam os objetos e as que distanciam. As que aproximam são usadas para capturar detalhes e vão desde as clássicas “zoom” até as lentes macro para olhares quase que microscópicos. Já as que distanciam são ideais para enquadrar paisagens e grandes estruturas. Embora operem em sentidos contrários, as duas têm algo em comum: o que se vê através delas não é exatamente o objeto retratado. Em sua função de capturar detalhes ou grandes planos, ambas distorcem a realidade. No entanto, para quem teve oportunidade apenas de ver o objeto retratado pelo olhar do fotógrafo e só tem a foto como referência, pode achar que o que vê é, sim, a realidade. Como escreveu Nilton Bonder em sua obra-prima A Alma Imoral, “quem não enxerga não sabe que não vê; quem vê, por sua vez, pensa que tudo o que vê é o que é.”
Lentes são mais do que meros recursos para fotógrafos, profissionais ou não. Lentes são necessárias para criarmos uma representação do mundo. A nossa representação. Cada um de nós carrega seu conjunto particular de lentes, o que torna nossa visão absolutamente única. O que nós vemos, ninguém mais vê. O que os outros veem, nós não vemos. E, no entanto, vivemos na maior parte do tempo sem nos darmos conta de que é assim que operamos.
Nos indignamos quando alguém não vê o que nós vemos. “É tão óbvio!” Acreditamos que o que vemos é realidade para todas as pessoas. Ignoramos que filtramos o tempo todo a realidade por meio de nossas lentes. Como o fotógrafo, não vemos as lentes. E nem temos o hábito de parar para refletir sobre nosso operar como observadores. A vida, no entanto, vai dando pistas. “Se alguma coisa é correta, você não precisa ser persuadido”, explica David Bohm, no livro Diálogo: Comunicação e redes de convivência. “Se alguém precisa persuadi-lo, é porque provavelmente há dúvidas a respeito do assunto.” E se há dúvidas, é sinal de que as lentes que os lados que discordam estão usando não coincidem.
“Toda vista é a vista de um ponto”, lembra Leonardo Boff. Além de não ver as lentes, o fato de não ver o que o outro vê nos deixa numa situação complicada: acreditar no que meus próprios olhos veem ou no que o outro vê e eu não sou capaz de ver?
O problema está na pergunta que só pode ser resolvida se um dos dois lados perder. A solução está em mudar “ou” por “e – e, para demonstrar surpresa diante de descoberta tão óbvia, você ainda pode trocar a interrogação por uma linda exclamação: acreditar no que meus próprios olhos vêem e no que o outro e eu não sou capaz de ver!
Sabendo que não somos capazes de enxergar a realidade como ela é, incluir o ponto de vista do outro é muito mais inteligente do que exclui-lo. “Se nos dermos conta de que não temos acesso à verdade absoluta. é melhor mesmo escutar o outro”, lembra Maturana. “O saber nega a reflexão. Me apego ao saber que sei. Não me pergunto: será assim? Serão as coisas o que eu penso que elas são?”
Considerar como válida a perspectiva do outro não é, portanto, uma questão de empatia, mas do mais puro pragmatismo. Estamos basicamente aumentando as taxas de sucesso na construção da realidade.
Mais, porém, do que meramente mudar uma conjunção por outra, na hora em que “ou” sai de cena para a entrada de “e”, estamos mudando a dinâmica relacional de oposição para complementariedade. A primeira dificulta que escutemos o outro, pois nosso corpo vive uma guerra onde um dos dois precisa vencer. Estamos tão ocupados tentando sobreviver que não dá para nos distrairmos escutando o que o outro tem a dizer. A segunda abre espaço para a curiosidade e a aprendizagem: “me conta o que você vê que eu não vejo!” E para apresentar nosso ponto de vista, basta dizer que temos uma opinião complementar à do outro. Porque é disso que de fato se trata: cada um vendo uma parte distorcida da realidade trocando suas impressões e criando uma representação conjunta mais ampla e verossímil do que as versões isoladas. Experimente fazer isso e perceba como a qualidade da conversa vai para outro patamar.
*Título extraído de uma frase de Rubem Alves em A Arte de Educar: “as palavras só têm sentido se nos ajudam a ver o mundo melhor. Aprendemos palavras para melhorar os olhos.”