Hoje criei coragem para escrever sobre o medo. O medo da morte, mas também o medo da vida. Medo que nos defende do que quer que pareça uma ameaça. E, por outro lado, que se alia com a dúvida e a incerteza para aprisionar nossos sonhos e paixões. Medo é sempre grande para quem tem. Medo que inventaram que é o oposto da coragem, quando, na verdade, se você pensar bem, vai descobrir que o medo é o lugar onde a coragem passa a existir. Diria até, sem medo de errar, que o medo é a semente, isso, a semente de onde a coragem escolhe brotar.
Se não fosse o medo da chuva, Raul Seixas não teria aprendido o segredo da vida vendo as pedras sozinhas que choram – e sonham – no mesmo lugar. Nem Belchior teria segurado pela primeira vez na mão de sua amada se não sentisse medo de avião. Mas se não fosse aquele medo bobo, Rubel já teria beijado antes e descoberto que foi melhor do que ele imaginou. Por isso, como Oswaldo Montenegro, eu peço todos os dias que a força do medo que tenho não me impeça de ver o que anseio. E que o medo da solidão se afaste, e que o convívio comigo mesmo se torne ao menos suportável.
A arte faz o medo mais bonito, desejável até – principalmente se você tiver alma de poeta. Ele pode ser um companheiro e tanto, do tipo que não nos abandona jamais. Como os medos de Fernando Pessoa, que tinham coral e praias e arvoredos. Ou o de Drummond, que criou um Congresso Internacional do Medo, onde “não cantaremos o ódio, porque este não existe, existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro, o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos, o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas…”
Mas aí vem a doença e leva a beleza embora. E desmancha a nossa cama, os nossos cabelos, os nossos planos, deixando no porta retratos a lembrança dura de nossa finitude. A doença, quando bate à porta quase sempre sem aviso, nos joga na cara sem cerimônia que a vida cheia de propósito que almejamos é, na verdade, fugaz e efêmera. “Temam menos a morte. E mais a vida insuficiente”, dizia Brecht. O medo de uma vida sem sentido talvez seja mesmo maior até do que o medo da morte. Por isso, passamos a vida buscando um sentido pra ela. Existirmos, a que será que se destina mesmo, Caetano?
“Nas tradições cristãs – explica a escritora Margaret Wheatley – os tempos de caos são chamados de ‘noite escura da alma’. Na noite escura, nós nos sentimos vazios de significado, totalmente sós, abandonados por Deus.” Não há momento mais potente para se perguntar sobre o sentido da vida do que uma noite escura. “Esses momentos negros – prossegue a autora – são a condição para o renascimento, para que surja um eu novo e mais forte.”
Vai. E, se der medo, vai com medo mesmo. Quem nunca escutou essa frase? Mas quando cai a noite escura da alma e você se sente totalmente só, abandonado por Deus, para onde ir se tudo a sua volta é escuridão?
Tudo o que é vivo precisa do medo para seguir vivendo. Medo é instinto em estado puro, precede a linguagem. É nele que começamos nosso caminhar para nos tornarmos humanos. Ele está na nossa origem, mas não precisa ser nosso destino. Por isso, quando estiver perdido na escuridão e não souber para onde ir, não hesite: pegue o caminho do medo, que é o mesmo caminho da coragem.
Sempre me disseram que a coragem é o contrário do medo. Mas aprendi que todo ato de coragem começa quando consigo acessar o medo pulsando dentro de mim, quando finalmente consigo abraçá-lo como o aliado que me ensina e não mais o inimigo que preciso evitar.
O medo nos acelera o coração para lembrar que estamos vivos. Por isso ele é a semente onde brota a coragem, que tem no radical a palavra coeur, coração. O medo faz o coração bater forte e a coragem acordar. E o que o medo quer da gente é ser ouvido: Olha, eu estou aqui. Para lembrar que você está vivo. Ainda. Então cuida. Cuida de ti. Cuida da vida. Tão frágil. Tão passageira. Me sinta. O sentido da vida…
Medo, primeiro passo para a coragem. A origem. A coragem é o destino. Dois pontos num mesmo caminho. Medo para se reconectar com a vida. Coragem para sair do conforto do útero, para evoluir, para lutar ou fugir, para voltar para casa e partir.
“Toda coragem precisa
De um medo para existir
Uma estranha dependência
Complicada de sentir.
A coragem de levantar
Vem do medo de cair.”
(Braulio Bessa)