Generosidade primitiva

quinta-feira, 20 agosto 2020, 18:29 | Tags: , | Comentários desativados em Generosidade primitiva
Postado por Fábio Betti 

Aprendi com minha mãe a ser guerreiro, a acreditar em meus sonhos, a não desistir nunca. Meu pai me ensinou a generosidade. Viveu no mesmo bairro por quase 50 anos. Era conhecido pelos vizinhos, seguranças do condomínio e funcionários da padaria como uma pessoa generosa, se dava bem com todo mundo. Apesar da vida simples propiciada por sua aposentadoria e uma pensão deixada por minha mãe, carregava no bolso um bolo de notas de 10 reais e distribuía gorjetas por onde passava. Quando ia ao laboratório fazer exames, levava chocolates de presente para as atendentes. Na última vez que foi hospitalizado, precisamos comprar vários pacotes de bombons que ele fazia questão de dar a cada pessoa que entrasse no quarto. As enfermeiras se revezavam para cuidá-lo. Em seu velório, me vi em certo momento tendo que consolar Hernandez, o porteiro do prédio onde morava, que, mais do que qualquer outro, soluçava desolado.

Meu pai não foi uma pessoa bem-sucedida se a lente para descrevê-lo for carreira. Ficou anos e anos desempregado e não atingiu nenhuma posição alta na hierarquia em qualquer dos empregos que teve. Só que sucesso pode ser medido de muitas outras formas.

Num desses empregos, tirou a sorte grande: conheceu minha mãe. Ela namorava um jovem promissor que, alguns anos depois, se tornaria o presidente do banco. O que ela teria visto em meu pai para ter aberto mão do ambicioso executivo, só ela para saber. Só sei que, em todos os lugares onde ele trabalhou, sempre foi conhecido como o sujeito que não era capaz de fazer mal a ninguém. Agia de maneira respeitosa e bem-humorada com todas as pessoas, independentemente de cargo, gênero ou classe social. Esse mesmo aspecto o fez ficar ao lado de um colega que havia sido injustamente demitido, o que o levou a ter o mesmo fim. Depois de 19 anos prestados ao referido banco. Uma vida feliz interrompida bruscamente. Sob a minha ótica, ele nunca superou esse trauma. Fez o que considerava justo, certo. E se deu mal. Mas se a vida profissional nunca mais decolaria, ele seguiria sendo a mesma pessoa humilde e generosa pelo resto dos seus dias.

Quando olho para meus irmãos e para mim mesmo, vejo muito de nosso pai em nós. E em nossos filhos. Temos hoje uma condição bem melhor do que a que ele teve e foi capaz de nos dar. No entanto, seguimos nos relacionando com qualquer pessoa que cruze em nossa vida com o mesmo cuidado e respeito que aprendemos. Tanto é que fico muito feliz quando, nas discussões que provoco nas redes sociais, vejo, entre amigos jornalistas, executivos, professores e intelectuais, perspectivas incríveis trazidas pelo empregado doméstico, pelo porteiro, pelo açougueiro, pelo mecânico de automóveis, pela assistente da farmácia e por tantas outras pessoas que chamamos de simples, mas que na verdade só são “simples” se as colocarmos sob a mesma lente que não foi capaz de ver em meu pai o ser humano bem sucedido que ele de fato era.

Podemos estar separados em muitos níveis, não há dúvida. Como seres humanos, porém, há diferenças tão pequenas que seria uma estupidez usá-las para não nos relacionarmos e deixarmos de nos perceber como parte de uma comunidade enorme de pessoas que se apoiam e gastam sua generosidade sem qualquer freio.

Felizmente, meu pai viveu o suficiente para ver que o que ele nos ensinou era o caminho certo também sob a lente do sucesso financeiro. Cada um de nós a seu jeito pôde experimentar o sucesso nos, digamos, moldes tradicionais.

Esse não é, no entanto, um caminho fácil. Eu diria que é o mais difícil. Em meu ofício de consultor, vejo com tristeza que na cultura do trabalho ainda predomina a competição entre colegas e a máxima “farinha pouca, meu pirão primeiro”. Status e poder são colocados no centro, estimulando a disputa entre as pessoas nesse jogo de só resta um. A vontade de mudar aparece apenas quando o ambiente já está tenso demais, com pessoas no limite do estresse, a produtividade e a capacidade de inovação em seus piores níveis e os altos índices de turnover demonstrando que essa cultura predatória, desumanizadora e baseada na escassez, além de prejudicial à saúde das pessoas, não é nem de longe um bom negócio.

Esperar as coisas ficarem insuportáveis para só aí fazer algo para mudar me parece muito pouco para quem é dotado de uma capacidade cognitiva tão superior a de outros animais.

Bom negócio mesmo é fazer como o senhor Primitivo – sim, era esse mesmo o nome de meu pai – e tantos outros que honram em seu fazer nossa ancestralidade de seres constitutivamente amorosos e não poupam esforços para serem generosos com seus semelhantes, custe o que custar.

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