Despertando(-se para) conversas significativas

quinta-feira, 20 agosto 2020, 23:08 | Tags: , , , , , , , , , , , | Comentários desativados em Despertando(-se para) conversas significativas
Postado por Fábio Betti 

Tecnicamente, toda rede é, por essência, social. Se é rede, significa que existam pelo menos duas pessoas conectadas por algum tipo de interação. Uma rede é, portanto, social de acordo com o conceito comumente aceito de relacionamento entre indivíduos, qualquer que seja a forma como eles se relacionem. Mas se entendermos as relações sociais como relações que se baseiam na aceitação do outro como legítimo outro na convivência, a maior parte das redes que atuamos e chamamos de redes sociais não são, de fato, sociais. E ter consciência sobre essa dinâmica nos empodera de uma forma que a maior parte de nós sequer faz ideia.

As mídias sociais que chamamos de redes sociais como Linkedin, Twitter, Facebook, Instagram, TikTok e Youtube, entre outras, nos fazem crer que são sociais porque sabem que, como seres humanos, precisamos de relações sociais para conservarmos nosso bem-estar de seres constitutivamente amorosos e, portanto, sociais. Por isso, seus algoritmos nos fazem chegar conteúdos que provocam em nós a sensação de que estamos nos relacionando socialmente com as pessoas que os postam, seja por afinidade, seja por oposição. Ambas provocam fricção e, com ela, a sensação de que estamos nos relacionando com outras pessoas.

Assim, nos mantemos ativos nessas redes, oferecendo informações gratuitamente a elas, de modo que possam ofertar produtos e serviços que preencham as características que informamos a elas, mesmo que de modo inconsciente. No entanto, em situações onde seguimos alguém a quem chamamos de influenciador ou somos seguidos por alguém que nos considere influenciador, emergem relações de poder, como um empregado que obedece a seu chefe. E relações que não se baseiam na aceitação do outro como um legítimo outro na convivência não são, em essência, relações sociais, como explica o biólogo chileno Humberto Maturana, pois estas se fundam na negação mútua implícita, na exigência de obediência e de concessão de poder que trazem consigo.

Como as mídias sociais seguem a lógica do “tempo é dinheiro”, precisam descobrir o mais rápido possível quem somos nós para que, também muito rapidamente, possam nos inundar de anúncios, de modo a que elas justifiquem seu modelo de negócios. Como defendeu-se Mark Zuckerberg, o poderoso criador do Facebook, diante do Congresso norte-americano que o acusava de ter vazado dados de 30 milhões de usuários da plataforma para a empresa Cambridge Analytica, “eu só vendo anúncios”.

Para a maior eficácia desses anúncios, as mídias sociais criaram mecanismos de troca baseados na superficialidade. Seja com o dedo na tela do celular ou com o cursor do computador, passamos tão rapidamente pelas informações que só mesmo fotos, vídeos curtos, links com manchetes chamativas e frases impactantes são capazes de chamar nossa atenção, ao mesmo tempo em que, na mesma velocidade, informam ao algoritmo das redes nossos desejos e preferências, de modo a que elas sigam oferecendo continuamente e, cada vez com mais precisão, os anúncios que vendem a seus clientes.

Parece loucura tentar mudar essa lógica. E, de fato, talvez seja. “Sonhar o sonho impossível, sofrer a angústia implacável, pisar onde os bravos não ousam, reparar o mal irreparável…essa é a minha busca”. Dom Quixote sabia das coisas. E por saber talvez demais, era considerado um louco. Por não se curvar diante das justiças e iniquidades, era realmente mais confortável por quem as praticava que ele passasse mesmo por louco. Mas quanta sabedoria ele destilava em sua jornada travada para revelar a verdade! Sua desgraça adveio do fato de que havia poucos com olhos para ver e ouvidos para ouvir. “O cativeiro é o maior mal que pode acudir aos homens”, pregava sabiamente, só que para moinhos de vento que, igualmente, não eram capazes de escutá-lo.

“Não sabendo que era impossível, ele foi lá e fez”, diria Cocteau para Quixote, se os dois, claro, tivessem tido a oportunidade de se encontrar. Só que quase 300 anos separam estes dois personagens de nossa história.

Pois eu tenho uma proposta quixotesca a fazer, tendo Cocteau também me apoiando, afinal, para citá-lo novamente, “nada existe de audacioso sem a desobediência às regras.”

E que proposta quixotesca audaciosa é esta?

Usar a lógica do algoritmo das mídias sociais para confundir o próprio algoritmo e criar dentro do que foi concebido para nos enganar uma rede social de verdade. Que absurdo é esse? Já esperava essa pergunta. Retruco: é uma proposta quixotesca das mais audaciosas, oras! Baseada no que? Como sempre, no único lugar onde tenho propriedade para falar: em minha própria experiência.

No lugar de postar aquilo que se espera para obtenção de likes, compartilhamentos e comentários superficiais, ou seja, fotos, vídeos curtos, links com manchetes chamativas e frases impactantes, passei a postar textos longos. Bem longos. Textões. Todos os dias. Por dias a fio. Sobre temas pesados, profundos, complexos. Doenças, mortes, o(s) sentido(s) da vida, entre outros assuntos de difícil digestão. E, ao fazer o contrário do que se espera e se recomenda para se manter um certo status na rede, o que se passou? Começaram a acontecer conversas significativas. Com pessoas que estavam “adormecidas” para mim. Que eu nem via entre os likes e comentários protocolares. Elas apareceram não só comentando os textões, mas qualificando seus comentários com suas perspectivas sobre o que escutaram do que disse, muitos deles carregados de emoções que justificariam chamar o que começávamos a experimentar como dinâmica de relações sociais. Relações baseadas na aceitação mútua. Na cumplicidade. No afeto. No cuidado uns com os outros.

Então minha proposta é esta: parem simplesmente de agir como robôs programados pelos algoritmos. Menos previsibilidade e mais autenticidade se faz favor! Sejam vocês mesmos. Luz e sombra. Compartilhem em suas redes suas reflexões mais profundas, suas conversas de alma, suas inquietações. E interajam com as pessoas que começarem a se impactar por suas histórias. Porque, não se surpreendam, as pessoas são tocadas quando nos tocamos em nossos recantos mais profundos. Ousem. Experimentem. Se precisarem seguir alguém, sigam os loucos, os sonhadores e os artistas que, como Quixote sabiamente profetizou, são movidos pelas paixões, pois sabem que, quando o coração transborda, a língua fala. E como fala!

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