Limitações e deficiências

domingo, 23 agosto 2020, 23:37 | Tags: | Comentários desativados em Limitações e deficiências
Postado por Fábio Betti 

Sempre acreditei que fosse alguém empático com pessoas que apresentassem algum tipo de deficiência ou limitação. Descobri que estava enganado. Bastou ficar algumas semanas sem voz por causa de uma cirurgia na tireóide para sentir na própria pele uma pequena fração do que essas pessoas enfrentam ao longo da vida. Pelo que experimentei, porém, a dor maior não é a falta de empatia. É não ser visto.

Na primeira sessão com a fonoaudióloga, respondi a um questionário para medir o impacto sobre minha qualidade de vida da perda momentânea da fala, em decorrência de uma paralisia da corda vocal direita após a retirada da tireóide. De 0 a 100, meu índice ficou em 75. É bastante alto, comentou a doutora. Não me surpreendi.

Trabalho em projetos de transformação, atuando no nível individual como coach e mentor e no coletivo por meio de palestras e workshops. Por mais que a escuta seja essencial nessas atividades, é a fala que predomina. Não bastasse isso, antes da primeira consulta com a fono, precisei diversas vezes me comunicar com outras pessoas, que simplesmente não entendiam os sons que eu emitia. E quanto mais elas diziam “desculpe-me, senhor, não entendi”, tanto mais eu me via obrigado a forçar o pouco de voz que me restava, que ia sumindo com o esforço, impedindo que a comunicação prosseguisse.

Ah, Fábio, você devia ter ficado calado se recuperando! Concordo. Meu plano era exatamente esse. O plano A. Mas sou adulto, não tenho ninguém me pajeando 24 horas por dia, preciso pagar meus boletos. Nem tudo pode ser feito por e-mail ou Whatsapp. Percebi o quanto a voz é necessária para resolver os problemas do dia a dia. Achei que já não usasse mais o modo telefone de meu celular para nada. Mais um autoengano para a lista.

E olha que me acho uma pessoa flexível. Já havia até me adaptado à nova condição do trabalho remoto, um avanço e tanto para quem, antes do início da pandemia, fazia quase tudo presencialmente. Até que a voz se foi. E lá fui eu de novo em busca de uma maneira de seguir adiante.

Descobri que se adaptar a um mundo que não reconhece suas próprias limitações dói mais que a própria limitação, mesmo que temporária. E olha que, de cara, eu já ia logo avisando, para poupar tempo, energia e, claro, voz: Fiz uma cirurgia, estou sem voz, falarei baixinho, não poderemos conversar muito. Alguns minutos depois e o outro já se esquecia que estava diante de uma pessoa com um distúrbio da fala. O pior é quando alguém me chama de longe esperando uma resposta. Como ainda não me acostumei com a nova condição, sem pensar tento responder e… não sai nada, enquanto a pessoa segue perguntando por mim. Que raiva!

As pessoas parecem tão anestesiadas que, rapidamente, voltam ao modo anterior. Especialmente aquelas que convivem comigo há mais tempo e estão muito mais acostumadas com o Fábio falante do que com o Fábio calado. Isso é tão forte que me pego às vezes me sentindo culpado por não conseguir falar. Sei que parece louco, mas é isso mesmo. Não conseguir corresponder à expectativa do outro é algo que me dói. Ainda. E aí penso que nada é por acaso. Perdi várias coisas ao longo da quarentena. A liberdade de ir e vir, meu trabalho presencial, minha sogra, dois cachorros, uma pedra nos rins, um molar, a tireóide e, junto com ela, a voz. O inventário é longo. Já devia ter superado essa coisa de corresponder às expectativas do outro, né?

Sou do tipo que acredita em “algo maior” desacreditando. Sei lá. Isso me ajuda a ficar num lugar de curiosidade genuína. Sinto que a fé cega me emburrece. Mas começo a acreditar que tudo o que estamos vivendo deve ter um motivo, uma “causa maior”. Suspeito que a minha deva estar ligada a essa necessidade de corresponder às expectativas do outro…

Não consigo aceitar o simples acaso para tantas coisas juntas no mesmo espaço e tempo. E observe que já não falo mais de mim. Falo de nós. Pois se eu compartilho as minhas histórias, também observo outras pessoas compartilhando as suas.

Estamos todos passando por muitas mortes e renascimentos. Cada um tendo que conviver com algum tipo de deficiência, que descrevo aqui como a perda da eficiência, temporária ou duradoura, que a pandemia nos trouxe na forma de uma limitação que cada um experimenta de uma forma diferente em seu viver. Uma limitação real que provoca uma perda de eficiência também real.

Que fiquemos mais atentos para não incluir nesse repertório o não ver o outro, o não aceitar que o que outro vive é tão único quanto o que a gente vive. O “novo  normal” sobre o qual tanto se fala talvez seja esse lugar onde as limitações e deficiências não podem mais ser escondidas. A máscara escondendo o rosto, mas deixando à mostra tudo o mais. Assim, talvez finalmente entendamos que todos nós temos algum tipo de limitação ou deficiência, o que as coloca no seu devido lugar: não mais como aberrações ou algo do qual deve-se ter culpa ou vergonha, mas como parte do maravilhoso espectro do que é ser um ser humano de verdade.

Como no kintsugi, a arte japonesa de reparar uma cerâmica quebrada com laca misturada com pó de metais nobres como ouro, prata ou platina, que possamos não só aceitar o imperfeito ou defeituoso como nos orgulharmos dele, reconhecendo-o como um evento único e, portanto, de valor inigualável em nossas vidas.

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