Sou de uma geração onde ser ateu era quase um crime, e religião era algo que não se podia discutir. Aliás, tinha até o dito popular “futebol, política e religião não se discutem”. Não se discutiam para não perder o amigo. Essa era a justificativa. Mas hoje suspeito que, parodiando Hamlet, há mais coisas no céu e na terra do que foram sonhadas na filosofia que aprendi ao longo da vida e da qual ditados como esse fizeram – e alguns ainda fazem – parte das crenças que me dominam e me fazem ver o mundo de um jeito particular e bastante distorcido.
O que é religião?
Para justificar seu ponto de vista, observei um amigo nas redes sociais dizendo que havia recorrido ao Wikipedia, uma fonte neutra. Não acredito em fontes neutras, nenhuma. Penso que sempre escolhemos fontes para justificar nossas preferências. “As premissas fundamentais de todo sistema racional – explica Maturana – são não- racionais, são noções, relações, distinções, elementos, verdades, que aceitamos a priori porque nos agradam.”
Isso posto, segundo o Wikipedia, religião é um conjunto de sistemas culturais e de crenças, além de visões de mundo, que estabelece os símbolos que relacionam a humanidade com a espiritualidade e seus próprios valores morais. Uma definição de dicionário. Para citar o historiador Yuval Harari – confesso, me tornei fã dele desde que devorei Homo Sapien -, religiões, assim como empresas e o conceito de nação, são narrativas que criamos para dar sentido às nossas vidas. Não são, portanto, algo transcendente, uma verdade em si. Quem dá o significado a elas somos nós. E, como diz Harari, “você pode fazer da sua religião algo muito tolerante e acolhedor ou fazer dela uma religião intolerante, homofóbica e chauvinista”. Só depende de você. Não está nas escrituras. Depende, portanto, de o que você quer quando afirma seguir uma religião. O problema é que muita gente usa a narrativa da religião para esconder suas crenças: “Eu odeio tal coisa? De modo algum. Deus odeia. Eu só sigo os Seus mandamentos.” Assim você justifica o seu ódio. E ainda lava suas mãos.
Como Harari, não acredito, se existe um Deus, que ele escolha punir quem quer que seja. Gosto de pensar que, se existe um Deus, ele seria puro amor. Então, se existe uma religião que pregue, disfarçadamente ou não, o ódio contra o que quer que seja, nós não estamos falando do mesmo Deus, se existe mesmo Um.
Com mais de 90 anos de vida bem vividos, a maior parte dos quais dedicados à pesquisa básica sobre a evolução humana e o sistema nervoso, volta e meia perguntam a Maturana se ele acredita em Deus. E ele conta que costuma responder depois de uma pequena pausa e fazendo um gesto largo com os braços abertos que, ao olhar a sua volta, para a natureza, se encanta com a perfeição de tudo o que vê. Sou do tipo que também acredita nesse Deus que encanta e com quem me encanto e que se expressa na beleza e na perfeição da natureza. Por esse motivo, resolvi citar esse meu professor mais uma vez. Estou apenas justificando o que acredito. Por outro lado, não desacredito no Deus das outras pessoas.
Quem sou eu para dizer que o meu é o Deus verdadeiro e o delas é falso?
Sou curioso, gosto de História e de histórias e me interesso genuinamente por esses outros Deuses. Conheço mais de perto o dos católicos e o dos espíritas, porque já fui católico e espírita praticante. Conheço também um pouco do Deus dos judeus e de religiões africanas porque amigos praticantes dessas religiões me contaram de seu Deus. E me encanto com as histórias que escuto quando falam de um Deus do amor. Assim como também me desencanto quando me falam de um Deus que julga, condena e castiga.
Por outro lado, se a religião que uma pessoa segue faz bem a ela, ao mesmo tempo em que não faz mal a outras pessoas, podemos seguir convivendo uns com os outros, pois nenhum dos lados vê o outro como ameaça ou algo que precisa ser corrigido, consertado, punido ou excluído. E podemos aprender sobre nós mesmos e os outros a partir das narrativas que chamamos de religião e que revelam nossas crenças e valores mais profundos.
Se a religião que alguém acredita, porém, pressupõe que há pessoas que merecem um lugar no paraíso e outras o fogo eterno do inferno, nosso convívio fica dificultado. Primeiro, porque, invariavelmente, essas religiões excluem grupos de pessoas por sua orientação sexual, e eu, graças a Deus – o do amor -, tenho vários amigos com orientações sexuais diversas da minha, o que torna nossas conversas e aprendizados ainda mais interessantes. Em algumas ocasiões, quando percebo disponibilidade no outro, mostro fatos e dados comprovando os muitos exemplos da multiplicidade sexual existentes na natureza, o que atesta as diversas orientações sexuais como o fenômeno natural que são. E, às vezes, percebo escuta, respeito e compreensão nessa conversa, o que me alegra e me estimula a seguir discutindo religião, entre tantas outras narrativas.
Mesmo que eu não seja nenhum criminoso, sou humano, o que significa que cometo erros, equívocos, injustiças, destemperos, pecados – só para citar uma palavra que várias religiões gostam de usar. E os faço na confiança de que era o melhor que podia fazer dado o contexto, o tempo e o grau de consciência que eu tinha no momento em que os cometi. Se, no entanto, ao fazer isso, sou julgado como alguém que merece arder no fogo eterno do inferno, embora eu tenha um apreço especial ao fogo – seja para cozinhar, em especial, meus caldos e sopas, seja para aquecer nos dias frios, não consigo me identificar com tal condenação por mais que possa ser algo verdadeiro para a pessoa que acredita nisso.
E aí deveríamos mesmo discutir religião.
Não é porque você acredita em algo que todas as pessoas também têm que acreditar. Não é porque sua religião o faz seguir determinadas regras que todas as pessoas também têm que seguir. Não é porque sua religião fala sobre verdades que elas de fato sejam verdades em si. Elas são verdades para você.
Se sua religião lhe faz bem, ótimo, você está no caminho certo. Mas se ela lhe obriga ou, simplesmente, sugere que você se afaste de outras pessoas que, por serem o que são ou fazerem o que fazem, não merecem o reino dos céus, é bom ficar atento. É bem possível que você esteja sendo usado para sustentar uma narrativa que lhe faça mal ao lhe afastar da natureza, a sua natureza humana, ou seja, o lugar onde você exerce o seu viver, onde tudo cabe e tudo tem sua função. E, mesmo ainda sem compreender, se você olhar bem a sua volta, com seus próprios olhos e não através das lentes de qualquer narrativa, é bem capaz que acabe se encantando com a perfeição de tudo o que vê.