O passado está morto

segunda-feira, 22 novembro 2010, 09:54 | Tags: , , | 10 comentários
Postado por Fábio Betti 


De vez em quando, sem que me dê conta, tento reviver meu passado. Só que, além de meia dúzia de lembranças desgastadas, não encontro mais nada que me faça revivê-lo. Nenhum suspiro, nenhuma lágrima, nenhuma respiração suspensa, o que me faz crer que o passado está mesmo morto.

Dizem que, ao atingir os 40 anos, os homens experimentam uma nova adolescência. Além da crise de identidade típica dessa fase, alguns rompem relacionamentos até então estáveis – com a esposa, com o trabalho, com o cachorro, consigo mesmos – e se metem a recuperar a juventude perdida. Matriculam-se na academia, fazem dieta, tonalizam os cabelos – pintar não, ok? -, vestem-se como seus filhos e, de preferência, frequentam as mesmas baladas que eles.

E, como nem tudo são flores na adolescência, surge a insegurança, o medo, a indecisão, a pressão pelo que “você vai ser agora que já cresceu?”

Tudo isso faz parte do mesmo pacote e, mesmo que parte dele me pareça muito atraente, quando me olho no espelho e vejo o que de fato sou, o adulto em que me tornei, percebo que não caibo mais nesse pacote.

Impossível ser adolescente de novo. Impossível reviver a liberdade, as descobertas, as emoções desse período que… já passou. Só ficaram lembranças e, mesmo elas, não são nem um pouco confiáveis. Selecionamos o que nos interessa lembrar, seja de positivo ou negativo.

Se queremos viver com uma imagem positiva, relembramos a época da inocência dos bailes onde disputávamos, entre os meninos, a menina que iríamos tirar para dançar quando a “música lenta” mais romântica começava a tocar na vitrola. Se o que nos interessa, eventualmente, é o contrário, reconstruímos o passado pelas desilusões, pelos tombos, que se tornam sempre maiores na hora de retratá-los.

Quando contamos nossa vida, nos transformamos em romancistas parciais que se enganam como documentaristas. Isso se dá porque o que aconteceu de fato está morto e enterrado. Ao tentar trazer o que já não existe mais de volta à vida, usamos os olhos, as palavras, os sentires do presente. É a forma como estamos vivendo hoje que define a maneira como relembramos o passado.

Nesse sentido, desperdiçamos o tempo presente, os recursos que dispomos para viver o tempo presente, nessa luta de sisifo na qual nos mergulhamos para reconstruir o passado. E somos trabalhadores tão incansáveis e aplicados que nos tornamos mestres na arte do auto engano, exímios criadores de vidas fictícias. Vidas que não aconteceram da forma como as lembramos e contamos – aos outros e a nós mesmos. Vidas que não aconteceram exatamente da forma como gostaríamos que acontecessem. Vidas que aconteceram da forma como podiam acontecer, dadas as condições que tínhamos para criá-las nos momentos presentes que se sucederam no tempo. Aliás, provavelmente, muitos desses presentes também devem ter sido desperdiçados nesse exercício de viver com os olhos voltados ao passado. Se hoje relembramos a adolescência, quando adolescentes, lembrávamos dos “bons tempos” da infância.

Nosso coração bate no presente, respiramos no presente, todas as nossas sinapses acontecem no presente, tudo o que nos acontece sempre acontece no presente. Não há, portanto, outra alternativa para vivermos plenamente. Melhor, portanto, acordar logo para poder viver o que nos resta a viver, de corpo e mente presentes. Ou ainda nos tornaremos velhos rancorosos com a vida que escapou pelos dedos sem ser vivida.

10 comentários para “O passado está morto”

  • Raíssa disse:

    Falou bonito! Bom texto…exprime a grande e inteligente ideia de que devemos viver o hoje, o ontem já se foi e o amanhã só deus é quem sabe. Só que nossa mente humana insiste em sair dessa “ideia”, insiste em viver do passado, talvez até pensando que este era melhor do que o presente, e também, pensando no futuro, com a preocupação deste ser bem melhor ou pior do que o presente também. Isso é um vício do qual devemos sair para viver intensamente, cada dia é único, que nunca repete, e nem tem de repetir. Como as pessoas, que são únicas. Grande abraço!

  • O presente sem dúvida é o melhor presente. Ao presente, live. E o passado, let die? Talvez não… só deixa guardadinho.

  • Fabio Betti disse:

    Claro, Chris, guardado e bem guardado, trancado num baú a sete chaves, como os ossos do barão.

  • que nenhum psicanalista leia isso… rs

  • Fabio Betti disse:

    Ih! Então dancei! Porque tenho muitos psicanalistas entre os leitores…

  • Clarissa disse:

    Rsrsrs. Eu li! Concordo com voces. E sua escrita , Fábio, sempre nos convida ao prazer de leitura. Mas….. é… ó….rs … me colocando como psicanalista que sou rsrsrs, acho que precisamos, exasperadamente, viver o presente para tentar viver plenamente. O paradoxo é: somos inexoravelmente constituídos pelo nosso passado. A questão não é trazê-lo amarrado qual a uma bola de chumbo ao tornozelo e sim, colocar rodinhas novas e lubrificadas nesse baú que nos acompanha para que bem deslize não empaque no caminho.
    Um beijão

  • Fabio Betti disse:

    Adorei a idéia do passado de rodinhas. Vou ver se coloco um motor turbo para que o meu passe mais rápido!

  • Dagui disse:

    Amo esse blog, além de aprender muito,me divertir,faço terapia grátis e as pessoas me perguntam: qual nome do seu terapeuta!?Vou acabar passando…

  • Fabio Betti disse:

    Dagui, você sempre tão carinhosa. Pode continuar indicando o blog, mas, pelo amor de Deus, não me apresente como terapeuta, que eu ainda acabo na cadeia como charlatão…rsrsrs

  • Emerson Ribeiro disse:

    Como uma rede elétrica, temos uma ligação direta com o nosso passado, e nenhuma com o futuro. No início escolhemos um caminho, mas a vida nos molda como se fosse um torno, e lentamente nossas experiências vão modificando as nossas idéias, preferências, gostos, etc., e muitas vezes até nosso caráter, assim no meio do caminho adquirimos nova identidade sem percebermos, de tal forma que quando chegamos aqui no presente, acabamos estranhando o destino que escolhemos no passado; nessa situação temos vontade de corrigir tudo, mas se voltar é impossível, pra frente pode não dar mais tempo, e aí a “crise dos 40”, “dos 50”, dos… Penso que é mais rápido consertarmos a rede elétrica que nos traz do passado a energia para o presente, ou então sermos muito honestos pra admitir que mudamos e lutarmos por outro destino.
    Emerson Ribeiro (edsrrrr@ig.com.br)

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