Todo fim de ano é a mesma história. Uma alegria cândida toma conta das ruas. Fogos explodem nos céus de todas as partes. Planos, desejos e promessas são renovados. O novo ano é uma espécie de amuleto da sorte, trazendo sempre esperança de uma vida melhor no futuro próximo – uma vida que, quando se concretiza, no entanto, raramente acaba correspondendo ao que se espera…
É a dieta que morre antes de começar, o cigarro que não se abandona, o relacionamento que não evolui, o comportamento indesejado que não muda, o emprego sonhado que não se concretiza, a casa própria que não sai do papel. São tantos nãos que, logo, já estamos no ano velho outra vez, cultivando recursivamente a esperança num futuro redentor. Só que não há qualquer futuro quando se tem os olhos fixos no passado – quanto mais um futuro que nos redima de uma vida que não nos satisfaz. A redenção não está no futuro. Nem no passado. O único tempo onde podemos nos livrar de qualquer obstáculo que nos impeça de realizar o viver que desejamos é o presente.
Na semana que antecedeu a passagem de ano, recebo surpreso o email de uma pessoa que trabalhou comigo alguns anos atrás e que acabou sendo desligada após uma discussão mais áspera. Ela escreveu: “ Você foi um cara legal e justo. Eu cometi alguns erros de avaliação, fui imatura e um pouco irresponsável. Se você puder me ouvir, ficarei contente.” E eu lhe respondi: ” Ao longo de minha vida, cometi muitas injustiças com pessoas – desde meus pais, irmãos, passando por colegas da escola, namoradas a colegas de trabalho. Em alguns casos, tive oportunidade de pedir desculpas pessoalmente. Em outros, isso não foi possível. O que gostaria de dizer é que não sei de que erros de avaliação você fala. No entanto, na eventualidade de qualquer culpa que você possa ter envolvendo nossa relação, gostaria que você soubesse que eu a perdoo, mesmo porque de minha parte não ficou absolutamente nada de ruim do que vivemos juntos. Eu também devo ter cometido injustiças com você e já me perdoei por isso. Espero que você também me perdoe.”
Eu não me lembrava do conflito que havíamos tido até que ela o trouxe à tona por meio do email. Em certo sentido, foi como seu eu o tivesse re-sentido. No entanto, nada nele fazia mais sentido. Parecia a reprise de um filme, só que agora eu era espectador e não protagonista. E perdoá-la pelo que quer que fosse era minha forma de desejar que ela também pudesse sair de cena de uma história que já passou e não pode mais ser revivida. Cada nova tentativa de revivê-la só serve para deturpar o que, de fato, aconteceu, uma vez que adiciona-se à memória os pensares e sentires do presente.
Uma ficção. É o que o passado vira toda vez que é revirado. Uma âncora. É o que as culpas se transformam quando se deformam pelo tempo.
Nem sempre podemos nos livrar de nossa culpa pelo perdão concedido por quem achamos ter causado algum mal. Certa vez, resolvi reencontrar uma de minhas primeiras namoradas. Queria dizer-lhe o quanto ela foi importante para mim e o quanto lamentava pelo fim tumultuado de nosso relacionamento. O encontro mostrou-se um total desencontro. A pessoa com quem eu me encontrava não tinha mais nada em comum com a que me encontrei e desencontrei no passado. As duas pessoas que se encontravam eram estranhas uma para a outra. Não havia nada de velho para ser dito, e o novo simplesmente não emergiu por falta de afinidade.
Durante anos, ensaiei uma conversa séria com meu pai. Na verdade, queria esfregar-lhe na cara os anos de distanciamento e ausência sentidos durante minha adolescência. Só que, quando finalmente me decidi, o pai com o qual me ressentia já não mais existia. No lugar dele, havia um senhor de 70 e poucos anos, divertido, simpático e, sobretudo, carente de atenção e cuidados. As palavras que eu guardava tornaram-se repentinamente velhas e carcomidas. Num gesto simples, sem qualquer gravidade, joguei-as ao vento e, como que por milagre, pude viver uma nova relação com esse pai que eu tinha, o único pai possível, posto que era o pai que vivia em meu presente e com o qual eu podia me relacionar da forma como escolhesse fazê-lo.
Com experiências como essas, aprendi que, no exato instante em que nos livramos do passado, tornamo-nos livres para escolher o que quisermos em nosso presente. Um exercício difícil esse, de ajustar o relógio sempre para o momento zero, porque a sensação é que abandonar o passado é como se deixássemos de ser, tão identificados que estamos com o que fomos. E, no entanto, é só isso mesmo: nos perdoarmos de tudo o que de mal acreditamos ter feito no passado – para os outros e para nós mesmos – só nos distancia do que fomos, abrindo espaço para o que somos.
Perdoar vem do latim tardio “perdonare”, junção dos termos “per”, prefixo de permanente e perpétuo, e “doare”. Perdoar, portanto, significa doação constante de um bem, o bem da compreensão, da tolerância e da piedade conosco, com os nossos e com os equívocos e ofensas alheias. Planos, desejos e promessas passam, mas perdoar é para sempre.
Você sempre tão sensato,rs
Me ensinou muitas coisas com suas reflexões e me fez rir outras tantas!
Só posso desejar um 2011 de grandes feitos e inspirações pra ti!
E não se esqueça:
“Tu serás sempre meu amigo… Basta olhar para o céu e estarei lá”…
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