Esvaziando o pote

quarta-feira, 13 abril 2011, 10:13 | Tags: , , , | Nenhum comentário
Postado por Fábio Betti 

Tenho sido perseguido. Dia e noite. Em qualquer lugar que eu vá, lá vão elas atrás de mim. Não me dão sossego. Sou assediado no Metrô, no meio de uma reunião com um cliente, na privacidade do banheiro e até mesmo em pleno ato amoroso. Frequentemente, sou pego de surpresa. Sem uma caneta ou um lápis à mão. Sem sequer um pedaço de papel – higiênico, sulfite, jornal, guardanapo, o que for. Elas não têm a menor cerimônia. Chegam e já vão se instalando. Como se a casa fosse sua.

Resolvi expulsá-las de minha vida, para sempre. Sei como fazer isso. Só que, depois de algum tempo, a gente acaba se apegando até mesmo a um intruso. Em meu íntimo, sei que devo me livrar delas. Por uma questão de sanidade. Quero evitar longos rituais ou despedidas melosas. Mas sinto-me na obrigação de ser justo, respeitoso.

Decidi, então, reunir todas essas idéias que têm se acumulado em minha cabeça nas últimas semanas e colocá-las no papel. Quem sabe alguma outra pessoa se ocupe em criá-las e a cuidar de seu crescimento? Não seria apenas um ato de piedade. Algumas delas parecem realmente boas. Elas apenas não conseguiram frutificar em mim. Talvez possam se dar melhor em outras terras.

A primeira das idéias que venho guardando é uma dessas que parecem ter um bom potencial. É a idéia de escrever sobre a eterna dualidade entre homens e mulheres. Só que não da maneira clássica, tipo “Homens são de Marte”, “Mulheres são de Vênus”. Não gostaria de subestimar a inteligência do leitor. Todos habitamos o mesmo planeta. Só estamos apegados a padrões históricos que dificultam uma aproximação verdadeira. Os exemplos não faltam: homem mandar flores para homem é coisa de veado; convidar uma amiga para almoçar é dar a entender que ela será o prato principal; sair para beber com os amigos é não desejar estar com ela; preferir o jogo de futebol ao filme romântico é uma grave prova de desinteresse. E olha que eu só estou colocando aqui a visão masculina da coisa toda. Se partirmos para o outro lado, a lista não terá mais fim! Bem, agora parece que agreguei o machismo à tal visão masculina.

A idéia, porém, não é escrever uma lista. É, pelo contrário, estabelecer um diálogo que ocorra apenas na imaginação de um casal.

O homem: “Ela cortou o cabelo, mudou o penteado. Será que está me traindo?”

A mulher: “Ele nem reparou que mudei o cabelo. Aposto que está me traindo!”

E por aí vai…

Outra idéia a quem também atribuo boas chances de êxito nas mãos de um amante do texto é a banalização dos verbos desculpar e amar. Como a da guerra dos sexos, concordo que esta também não é uma idéia muito inédita, mas pode ajudar na reflexão sobre nossa capacidade de destruir o significado da língua portuguesa. No caso de amar, já faz algum tempo o verbo vem sendo aplicado para qualquer coisa: sorvete, tênis, programa, carro, roupa e, vez ou outra, pessoas. “Eu amo Power Rangers!” Diria meu filho do alto de seus 8 anos. “Eu também amo você, papai!” Ufa, que alívio! “Quase tanto quanto os Power Rangers!”

Desculpar é outro verbo que já teve seus dias de glória. Usá-lo exigia um enorme esforço mental e psicológico. Até o corpo participava das desculpas – os olhos franzidos, os lábios apertados, a boca seca, o coração em disparo, os ombros caídos. Desculpar era um verbo holístico, muito antes do holismo ter virado moda. Agora não. Agora é “desculpe alguma coisa…” Como assim? Que coisa? Desculpar virou um verbo passa-bastão. Serve para passar a culpa para a frente e não aceita devolução. “Já pedi desculpas. Que mais você quer?” Isso me faz pensar que a idéia nasceu meio torta. Quem for pegá-la pode esquecer do amar e ficar concentrado apenas no desculpar, que, certamente, já terá bastante pano para manga.

A manga me leva a outra idéia. Tenho um especial apreço por esta. Tanto que se algum colega resolver dissecá-la, peço o favor de me enviar o escrito para tirar-me da angústia a que vivo desde que ela surgiu em minha vida. Qual é o mistério que cerca o horário das 10h10? É sobre isso que imploro que alguém escreva. Fora o fato de a publicidade sempre usá-lo para vender relógios – ainda não vi um libertário que o fizesse diferente -, o misterioso horário costuma aparecer para mim mais que qualquer outro. Será que minha mente acabou sendo condicionada a olhar o relógio com mais frequência nessas duas vezes por dia? Pois é, meu relógio é de ponteiros, o que significa que a tormenta diária é dobrada. Já cogitei as mais diversas possibilidades. Seria algum segredo relacionado à cabala? A imagem distorcida de Cristo na cruz? O horário de minha morte? Ufa! Alívio! Acabo de olhar no relógio e são 08h30.

Esta outra aqui poderia vir a dar um conto hiperrealista interessante. Surge no mercado um remédio que faz com que as pessoas só falem o que pensam. Basta um comprimido para que os pensamentos sejam enviados direta e imediatamente para a boca. A substância revolucionária conduz os pensamentos por um atalho que evita o encontro com o super ego. Driblado, ele não tem como censurar ou reter os pensamentos, que são despejados garganta a fora sem qualquer controle de seu autor. Uma cidade inteira toma o remédio por engano. A resenha do conto poderia descrevê-lo como uma Babel contemporânea com um resultado surpreendente. O surpreendente é apenas uma sugestão que deixo a cargo de quem se sensibilizar com essa semente de história.

Ouvido virtual. Esta idéia veio de uma amiga que também escreve. Ela não deveria ter colocado isso em uma mensagem que me enviou. Peço encarecidamente que a pegue de volta. Na verdade, gosto da idéia de escrever sobre o fenômeno de troca de mensagens eletrônicas entre as pessoas no mundo todo, estreitando vínculos e, por vezes, criando “ouvidos virtuais”. Mas a idéia ficou nisso. Morreu prematura. Deve, portanto, voltar a seu seio materno.

Agora, sim, sinto-me mais leve. Estou livre para continuar sendo atacado por estas malditas de quem não consigo viver longe. Tornei-me um viciado e me apaixonei por quem me mantém em cativeiro.

Rubem Alves escreve que “poeta é pote. Poesia é agua.”

O que fiz, portanto, foi apenas esvaziar meu pote. Pelo menos, até que venha um novo filete de água.

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