A despeito de certa, diga-se de passagem, equivocada aura de glamour que cerca meu principal ganha-pão – como qualquer outro trabalho, uma simples combinação entre transpiração e inspiração – o fato é que, às vezes, acabo sendo realmente privilegiado com oportunidades extensivas a pouquíssimas pessoas. Este é o caso da tarefa que certa vez, me coube de gravar imagens da exposição “Porta do Inferno”, um conjunto de obras, que, claro, inclui a dita cuja, do maior escultor de todos os tempos. Ele mesmo, Auguste Rodin, em pessoa – ou melhor dizendo, em alma!
Fomos contratados por uma das empresas patrocinadoras do evento para registrar as principais obras que vieram ao Brasil diretamente do Museu Rodin, em Paris. E lá fomos nós, em meio aos detalhes finais da montagem, usufruir de curtíssimas duas horas a sós com Adão, Eva, A Meditação, O Pensador, Ugolino, O Homem que Cai, Narciso, entre outros tantos personagens que o artista dá vida por meio de seu trabalho com o mármore, o barro e o gesso.
É como se Rodin tivesse inventado uma máquina capaz de produzir instantâneos em terceira dimensão, com o detalhe de não reproduzir apenas uma cena, mas a emoção presente no momento em que esse registro é realizado.
Assim, o “homem que pensa” é congelado não só em seu contorcionismo absurdo mas também em seus pensamentos e emoções. O casal que quase beija – pois que O Beijo na verdade não se realiza na escultura –parece girar a nossa frente em seu carrossel de emoções. Ao contrário do que ocorre em A Eterna Juventude, onde o que se vê é a entrega total de um beijo de corpo inteiro, visivelmente apaixonado. Já o olhar aterrorizado da Carpideira nos encara em sua tristeza profunda, comovente. E a expressão animal de Ugolino, então! O personagem de Dante condenado a morrer devorando seus próprios filhos vive na escultura de bronze, como se o artista pudesse realmente captar tudo o que o homem é, aprisionando-o na matéria que suas mãos deram forma.
O que faz de Rodin capaz de tal proeza? Como pode um homem reproduzir a vida em um pedaço de pedra? Talvez nem Rodin soubesse essa resposta. No entanto, eu tenho um palpite – aliás, parece que sempre tenho um palpite para tudo! E minha opinião não se baseia no minucioso estudo da obra de Rodin, mas tão somente na experiência de deixar que as emoções contidas em algumas de suas obras pudessem fluir sem barreiras, sem censura, em minha direção.
Como resultado desse processo, ficou a impressão de que a intenção de seu trabalho não é fazer uma escultura, nem muito menos criar uma obra de arte. Estas seriam consequências de algo ainda mais ambicioso.
O que Rodin faz – ou procura fazer – é matar o humano para deixar que o divino possa renascer e, assim, ser perpetuado através da obra de arte – ela, a obra, sendo, portanto, mera consequência dessa busca.
Isso explicaria, por exemplo, porque ele não teria conseguido terminar Eva. A história desta obra é que Rodin estava intrigado porque, todos os dias, tinha de refazer o ventre da escultura. Até que acabou descobrindo que a modelo estava grávida. O que fez Rodin? Interrompeu imediatamente seu trabalho, dando-o por concluído. E assim ela ficou: sem o refinado acabamento que dá às figuras esculpidas pelo artista um ar de absoluta realidade. E, no entanto, Eva parece tão viva quanto qualquer outra de suas obras, numa prova que não é a técnica que faz de Rodin capaz de imortalizar a vida. É a intenção expressa de guardar um instante em toda sua plenitude.
Sem perceber, a cada dia que Rodin retocava Eva, o que fazia era recriá-la, registrando uma sucessão de instantes impossíveis de serem repetidos. Diferentemente dos modelos com os quais estava acostumado a trabalhar, capazes de ficarem horas imobilizados nas posições mais inusitadas, Rodin parecia estar sempre um instante atrasado em relação à Eva. Até que o artista abriu mão de sua intenção e ela se fez, e continua se fazendo na cabeça e, sobretudo, no coração de quem tem a oportunidade de ver em Eva a revelação da permanente ressurreição da vida. Porque a pedra, nas mãos de Rodin, palpita.