Caia uma chuva intermitente, um vento frio exigia abrigo. Assim, lá estava eu, praticamente ilhado na área onde faço churrasco, a poucos metros de nossa casa de campo em Ibiúna, sem vontade de ler um livro, sozinho, enquanto minha mulher e meus filhos permaneciam na casa preparando uma sopa para o jantar. Resolvi colocar para tocar uma seleção de músicas que eu costumava curtir adoidado quando mais jovem. Peguei um velho caderno, uma caneta, sentei-me numa posição onde poderia observar a chuva sem ser atingido diretamente pelo vento e comecei a escrever – e mesmo que meus sentimentos nesse momento em que resolvi escrever não fossem de muito bem-estar, lembrá-lo me levou a uma sensação de bem-estar, o que me faz refletir sobre o quão prazeroso podem ser as reflexões sobre o nosso viver, e não apenas sobre os momentos que identificamos como de bem-estar. Enfim, o que escrevi naquele momento, embalado pelas trilhas sonoras de minha juventude, foi o seguinte…
“São 11h da manhã. Será que já posso tomar uma vodka? Não, não sou alcóolatra. Sequer costumo tomar vodka, quanto mais pela manhã. É que o dia frio e chuvoso convida para o calor de um destilado. Ok, só um copo, pequeno. Tenho todo o tempo do mundo. Pelo menos, esta é a sensação que apareceu agora. Dias de chuva insistente longe da cidade grande, embalados por Elton John, combinação poderosa. Ou perigosa. Por que disse isso? Qual é o perigo de mergulhar para dentro senão se perder na noite escura? Não, não estou vivendo nenhuma noite escura no momento, não que eu saiba. É que sempre há um bocado de sombra pelo caminho, especialmente quando se viaja sem destino. Nunca se sabe o que se pode encontrar depois da próxima curva. Ao espetáculo arrebatador do por do sol, sempre vem a escuridão e seus mistérios. O sono profundo deve ter nos sido dado como uma benção para atravessar nossas noites escuras sem consciência. E a insônia, então, é uma praga que nos lançam como punição, só pode ser. Mas estamos muito longe da próxima noite. Só se passaram 10 minutos das 11h dessa manhã cinzenta que convida a não fazer nada, quanto mais viajar, seja para fora, seja para dentro. Meu medo é não encontrar nada na viagem, nem mesmo uma noite escura. “Empty Garden”, canta Elton John. Já ouvi dizer que o vazio é a paz suprema. Eu tenho medo do vazio. Tenho medo de me esquecer, esquecer quem sou ou , pelo menos, quem finjo ser, essa imagem cômoda o suficiente para eu me permitir tomar um ou dois copos, pequenos, de vodka antes do almoço, sem me lixar com o que os outros irão dizer ou pensar. Meu corpo absorve os goles de vodka como a terra encharcada absorve a chuva. Não, não estou cheio de bebida, estou cheio é de seu torpor anestesiante. A vodka é só mais uma da lista. Minha droga alienante preferida é o trabalho. Quando mergulho nele, o vazio fica tão distante, que acredito piamente que ele é uma grande ilusão, que nunca existiu. Conversas sem pauta com pessoas que conheço pouco também são muito eficazes. A excitação pelo novo é tão intensa, que me sinto como um arqueólogo que acaba de descobrir um pequeno osso, possivelmente, parte de um grande dinossauro. Não há espaço ao vazio. Agora, no entanto, estou só e não tenho a menor disposição para o trabalho, qualquer trabalho. Melhor encher o copo de vodka de novo, pelo menos, ele, não deixo vazio. O copo é pequeno, garanto, mas o vazio, às vezes, parece tão grande… Deve ter existido algo enorme onde hoje ele habita, só pode ser.” (15/10/2011)