A ideia surgiu no meio de uma semana do curso de Biologia-Cultural, especificamente, no dia 13 de julho de 2011. Com o tema do trabalho de conclusão a ser realizado em grupo devidamente definido, faltava encontrar um caminho onde me sentisse mais à vontade para dar minha contribuição, uma forma onde eu me percebesse, verdadeiramente, no fluir da conservação do bem-estar. Mas antes de apresentar essa ideia, gostaria de discorrer um pouco sobre o tema, de modo a expressar minha visão particular sobre ele.
Em primeiro lugar, por que o tema bem-estar?
Para mim, o bem-estar é um tema fundamental para a Biologia-Cultural, na medida em que, pelo que compreendi do que ouvi ao longo dos três anos do programa de formação, a relação organismo-nicho e as coordenações de coordenações de sentires íntimos, emoções e fazeres ocorre por meio de coerências consensuais estabelecidas entre os diferentes organismos que se inter-relacionam – coerências que se estabelecem a partir do processo de autopoiesis, na medida em que todo organismo se produz a si mesmo e, assim, biologicamente, tende a buscar sua autopreservação indefinidamente. E a autopreservação de qualquer ser vivo depende de o mesmo encontrar continuamente as condições para que possa se autoproduzir. Quando não se pode mais conservar essas condições, cessa o viver desse organismo. Ao conjunto dessas condições, presentes tanto na relação organismo-nicho, quanto na relação entre os diferentes organismos, podemos nomear simplesmente de bem-estar.
Como e por que ampliar a visão sobre o tema?
Nos grupos de diálogo da Biologia-Cultural, experimentamos a possibilidade de aprofundar nossa reflexão sobre como fazemos o que fazemos e abrir nossa escuta para o olhar do outro sobre si mesmo e sobre nós – sobre como e de onde o outro vê a si mesmo fazendo o que faz e sobre como e de onde o outro nos vê fazendo o que fazemos. Os grupos de diálogo propiciam, portanto, a ampliação da visão do observador e o aprofundamento do próprio processo reflexivo. Cada membro do grupo faz isso a partir de si mesmo – a partir de como vê a si mesmo operando em seu viver. A proposta é que, além desse exercício reflexivo sobre o bem-estar dentro do grupo, o trabalho de conclusão do curso de formação em Biologia-Cultural possa trazer novos olhares sobre o tema – olhares que ampliem a visão sobre a conservação do bem-estar além das fronteiras do próprio grupo e até da formação em Biologia-Cultural. Para tanto, cada membro do grupo pesquisou, a sua maneira, como outras pessoas entendem e vivem o bem-estar, partilhando o material coletado com os demais membros do grupo. Dentro do princípio reflexivo-recursivo da Biologia-Cultural, o objetivo é que o material coletado pudesse, a partir de si mesmo, colaborar para gerar mais material. E o que começou com um convite individual dentro do próprio grupo para refletir sobre o bem-estar e seguiu para convites dirigidos a terceiros, que também acabaram participando dessa rede de conversações.
Entendo que cada membro do grupo teve a oportunidade de escolher sua maneira particular de colaborar para a ampliação da visão sobre o tema, identificando um processo colaborativo coerente com seu viver no bem-estar. Em outras palavras, o próprio processo de construção do trabalho já é em si um processo ampliador de visão, na medida em que aceita e inclui a forma de contribuição de cada um como legítima. A forma que encontrei para fazer isso apareceu em uma ideia antiga, já experimentada em outros tempos, um diário.
Quais são minhas questões, anseios e hipóteses?
Quando endereço a mim a pergunta “o que é bem-estar?”, só consigo respondê-la quando a coloco em meu viver. Transformada em ação, ela finalmente ganha significado. Por isso, achei natural tentar respondê-la no movimento, às vezes lento, às vezes rápido de minha vida nesse “presente contínuo cambiante”. Iniciei essa jornada na hipótese de que, ao registrar meus momentos cotidianos de bem-estar e, assim, torná-los conscientes a mim mesmo, talvez pudesse, de alguma forma, conduzir meu viver mais nesse fluxo que me anima do que em seu contrário.
Minhas questões de partida
Será que, se eu ampliar minha visão e tornar-me mais consciente sobre o meu bem-estar, registrando o que antes passava despercebido, minha vida realmente irá se transformar em torno disso? O fato de me manter consciente sobre meu bem-estar me permite fazer escolhas que conduzam o meu viver por um caminho mais de bem-estar do que de mal-estar?
Há também nessa proposta uma intenção de experimentar um processo reflexivo contínuo apreciativo, que foca como seu objeto o bem-estar e não o mal-estar. Isso não significa, no entanto, que eu pretenda excluir qualquer pensamento ou sentimento de mal-estar, que, eventualmente, possa surgir no caminho. A própria forma que escolhi para realizar esse projeto traz em si algo de mal-estar, pois estou firmando um compromisso de registrar diariamente meus momentos de bem-estar, e só o fato de me sentir obrigado a isso já causa algum desconforto. Por outro lado, também me conecto com o prazer incrível que experimentei quando, no auge de minha adolescência, me comunicava diariamente comigo mesmo por meio de um diário. Em cadernos e blocos de anotações, registrava pensamentos, sentimentos e fazeres numa dinâmica operacional que me foi essencial para enfrentar um momento de muita dúvida e solidão em meu viver. Em outras palavras, um diário foi capaz de me tirar do mal-estar para me reconduzir ao bem-estar. Sou muito grato a ele por isso, e foi com essa energia que me conectei para repetir o experimento em um novo momento de meu viver.
Reflexões sobre o modus operandi do experimento
Como registrar os, possivelmente, muitos momentos de bem-estar que posso ter ao longo do dia? Que plataformas pretendo utilizar? Que critérios irei empregar para definir o que deve ou não ser registrado?
A partir dessas perguntas, defini, a priori, que iria gravar os registros de bem-estar em meu celular, que, sempre à mão, me pareceu um recurso de fácil utilização, inclusive, no trânsito. Num segundo momento, percebi que, em situações onde, de alguma forma, estou impedido de usar o celular – por exemplo, em um evento público-, também seria útil fazer anotações em um pequeno bloco de papel do tipo moleskine. Depois de algum tempo, senti necessidade de organizar e formalizar os registros em arquivos de Word separados por data. E, terminado o experimento, tomei a decisão de publicar a maior parte dos registros em meu blog pessoal (www.discutindoarelacao.com). O objetivo era criar mais uma oportunidade para me ler e, portanto, prosseguir refletindo recursivamente, ao mesmo tempo em que também abriria um espaço para ampliar a reflexão para outras esferas e grupos sociais.
Qualquer que fosse o recurso empregado para os registros, o fato é que não me importei muito com o critério do que deveria ou não ir para o “diário”. A seleção era, na maior parte das vezes, instantânea, sem muito tempo para grandes racionalizações, na medida em que acontecia no momento seguinte à experiência mesma, o que acabou por conferir uma espontaneidade muito grande aos registros. Nesse aspecto, pode-se dizer que o principal critério para discriminar um momento de conservação do bem-estar em meu viver tinha muito mais a ver com uma sensação, uma consciência corporal, do que um processo de validação mental. Tanto é que, não raras vezes, me surpreendi ao distinguir situações de bem-estar que, antes, passavam totalmente despercebidas.
O bem-estar já está aqui
Reproduzo abaixo os dois primeiros registros do “diário”:
– Depois que chupo a bala Halls de cereja, fica um friozinho deliciosamente refrescante na garganta.
– Logo após registrar no gravador de meu celular o prazer que é chupar a balinha, derrubo duas no piso do carro e, antes de me abaixar para procurá-las e causar algum acidente, começo a rir de mim mesmo. Em segundos, reflito como rir dos erros que cometo é prazeroso, na medida em que me liberta da punição.
Como se vê, apareceram coisas simples, sem trombetas ou fogos de artifício. Na maior parte do tempo, foi exatamente isso o que emergiu: situações cotidianas que, destacadas por um olhar mais apreciativo e que se conecta com as necessidades e desejos do corpo, tornam-se surpreendentemente sublimes e inesquecíveis. E, assim, o que é tratado como cotidiano e, portanto, repetitivo, ressurge como inédito. Até mesmo quando uma situação parece se repetir, sinto-a absolutamente diferente, percebendo as diferenças em suas inúmeras sutilezas. Este foi o caso da situação de bem-estar observada mais de uma vez quando parei meu carro para dar passagem para os pedestres atravessarem a rua pela faixa de segurança. Em certo sentido, havia algo de dejavú – eu parando o carro, o pedestre caminhando em câmera lenta e me sorrindo, nossos olhares se cruzando -, mas o contexto era outro, as pessoas, o local do encontro, o tempo em que cada cena acontecia. E a sensação de bem-estar funcionava como uma espécie de código capaz de relacionar uma situação à outra. Era como se o sentimento fosse o mesmo, uma sensação comum de conexão com pessoas desconhecidas, repentinamente destacadas pelo meu olhar – mais do que isso, ao observá-las em meu caminho de conservação de bem-estar, elas não apenas ganharam vida, ou seja, passaram a existir para mim, como tornaram-se importantes na medida em que foram identificadas como participantes de meu processo de autoconservação. Essa prazerosa e surpreendente sensação de conexão com indivíduos até então desconhecidos se repetiu muitas e muitas vezes ao longo dos 100 dias do experimento.
Em diversos momentos, tive a nítida sensação de que meu corpo – e aqui não separo o corpo da mente ou do espírito – já fez escolhas e continua fazendo escolhas que me levam à conservação de meu bem-estar, mesmo que eu não me dê conta delas. Parece que a consciência surge depois dessas escolhas. Mais do que isso, a consciência as revela – revela a mim mesmo as escolhas que faço e não me dou conta no momento em que as faço; percebi que de algumas dessas escolhas, inclusive, só me dou conta muito tempo depois de as fazer.
Percebo claramente uma inteligência nesse processo de selecionar o que me faz bem, como algo inerente ao meu processo de autopoiesis – e essa inteligência parece existir em algum lugar além da consciência, atuando num nível bem mais profundo. Pergunto-me se focalizar propositalmente minha atenção nesse processo é o que teria permitido que essa consciência emergisse. E o que vi, repito, foram situações, na grande maioria, muito simples, que eu já havia experimentado de uma maneira ou de outra, porém, sem distingui-las pela observação, é como se elas nunca tivessem acontecido, como os sonhos que não se consegue lembrar ao acordar.
Nem tudo são flores
Um de meus maiores temores – algo que não foi totalmente explicitado no início do experimento, mas que apareceu em seu transcorrer em diversas reflexões -, era o de me apaixonar pelo olhar apreciativo de tal maneira que criaria um mundo ilusório, onde eu visse tudo em tons de rosa. Realmente, me peguei no dilema de registrar ou não situações de mal-estar que acabaram aparecendo no meio do caminho. Na grande maioria das vezes, decidi registrá-las, o que acabou se revelando um exercício de grande aprendizado, na medida em que nenhuma situação específica, seja de mal-estar, seja de bem-estar, se mostrou duradoura a ponto de eu me sentir apegado a ela. Conclui que isso significa que quando o mal-estar aparecia como uma desconfortável pedra no meio caminho, era apenas uma pedra no meio do caminho. Depois de me recuperar do tombo ou da dolorosa topada com o dedão do pé, logo lá estava eu de novo vivendo alguma situação de bem-estar, o que me fez concluir que o bem-estar é realmente a tendência predominante de meu viver.
Em um ou outro episódio, as duas situações pareceram acontecer de maneira concomitante. Como exemplo desse fenômeno que observei durante o experimento, cito o dia em que fui informado do falecimento de meu sogro. Estávamos eu, minha esposa e meus filhos de férias nos Estados Unidos e me senti dividido entre a tristeza da perda de uma pessoa muito querida para mim e a alegria por estar com minha família num contexto paradisíaco. A dor e o prazer estavam em mim ao mesmo tempo, e eu não sabia se chorava ou se sorria. Ao refletir sobre essa situação, recordei-me da cerimônia de meu casamento, realizada apenas dois meses após o falecimento de minha mãe e onde também experimentei o conflito interior de viver dois sentimentos que eu considerava – e ainda considero – opostos. Tanto em uma como em outra experiência, observei que, apesar de parecerem opostos, alegria e tristeza, dor e prazer podem muito bem se manifestar no mesmo espaço-tempo, o que me leva a refletir que, nesse tipo de contexto, eles surgem muito mais como complementares do que como opostos.
A volta à vida mundana cotidiana
Embora eu nunca tivesse me comprometido que iria produzir um diário de verdade, ou seja, um registro dia-a-dia, observei que, no primeiro terço da experiência, foi comum realizar mais de um registro por dia. Essa frequência foi se espaçando conforme a experiência evoluía, chegando, em alguns períodos, a cinco/seis dias sem que eu tomasse qualquer nota.
Quando reflito sobre esse fenômeno, penso que vivi um conflito interno importante entre a necessidade de realizar a tarefa e o prazer de deixá-la fluir naturalmente. Desse conflito, parece que a disciplina ficou em desvantagem, porque tão logo completaram-se os 100 dias, não mais me motivei a registrar os momentos que distinguo relacionados à conservação de meu bem-estar.
Sem a prática regular, observo que voltei a cair no moto-contínuo da não-consciência, experimentando novamente a sensação de que algo valioso estaria escapando de minhas mãos. Essa volta a um modo de operar onde não me dou conta de meu bem-estar tem gerado, por si só, uma sensação de profundo mal-estar. Deduzo que antes eu vivia sem focalizar o mundo com essa lente e, portanto, não possuía um comparativo. A experiência de ter utilizado essa lente talvez tenha criado um componente a mais de pressão em direção a um estado de mais consciência. Percebo isso no exato momento em que escrevo essas linhas e me vem a vontade de prosseguir com o “diário”. Para isso, tenho como claro que precisarei abrir mão por enquanto de algum percentual de liberdade para permitir que um pouco de disciplina me ajude a praticar algo que, já foi devidamente experimentado, de fato me faz muito bem. Quem sabe a prática regular produza musculatura suficiente para que eu possa prosseguir de modo mais orgânico e espontâneo. E aí, talvez, como normalmente se dá com a atividade física, depois de algum tempo a endorfina resultante do esforço contínuo se encarregue de que esse modo de operar mais presente e consciente se incorpore de vez a meu viver.
Caro Fábio!
No budismo tibetano a apreciação é ao lado da compaixão um dos principais veículos para a iluminação!
Mais do que musculatura ou endorfinas, se pressupõe a formação de uma identidade totalmente referida na capacidade de apreciação.
Mais do que se preocupar em estar se tornando uma espécie de Poliana, reconhecer que a realidade construída pela percepção de mal estar e de frustração é tbém ilusória.
Freud chama a esta realidade de neurótica! Abandonar o mal estar da civilização para abraçar o bem estar traz realmente a possibilidade do desembotamento dos sentidos.
A apreciação passa então a alimentar os sentidos com a riqueza necessária para a ampliação da qualidade do contato e da troca com o vivo, enriquecendo exponencialmente a autopoiesis que dá sustentação à vida.
Podemos então “reconhecer a mnifestação de sabedoria pura no surgir de cada fenômeno”.
Curioso você trazer essa visão sobre minha experiência, pois sinto uma conexão profunda entre a Biologia-Cultural e o budismo. Embora Maturana nunca tenha tornado isso explícito, o “presente contínuo cambiante” que ele traz o tempo todo, para mim, é uma outra forma de encarar a impermanência, um dos princípios do pensamento budista. Abraços