Faz tempo, Clarice, que não escrevo sobre a morte, mas, como meu tema é a vida, e a vida é esse contínuo correr em direção a um muro onde, um dia, nosso ser biológico se desintegrará, aqui estou eu de novo falando sobre o morrer, que, assim, é só um outro nome pelo qual o viver pode ser chamado.
Viver e morrer. Um sempre lembra o outro. Aliás, o que seria de um sem o outro? Saramago, o escritor que leva o segredo de sua sabedoria no nome, ousou imaginar isso em “Intermitências da Morte”. O que aconteceria se um povo de uma determinada região simplesmente parasse de morrer? É a pergunta que ele se fez. E a vida se torna um tormento, literalmente, sem fim para aquelas pessoas que, passada a alegria inicial pelo fenômeno inusitado, enlouquecem com a possibilidade de existirem para sempre.
Quem inventou o “para sempre”? A natureza, da qual nós, homens e mulheres, fazemos parte, certamente não foi. Porque na natureza nada é para sempre, tudo é viver e morrer. Não existe o tempo, só ciclos. O ciclo das estações, o ciclo das marés, o ciclo das órbitas planetárias, o ciclo da vida. Não há qualquer relógio que marque o tempo infinitamente. Isso, fomos nós que inventamos. E nos enganamos todas as vezes que acreditamos em nossa criação como uma verdade absoluta. Como pode existir uma verdade absoluta em algo vivo, Clarice? Tudo o que é vivo muda o tempo todo. Verdades, portanto, são efêmeras, fugazes, instáveis, verdades morrem. O único momento que a verdade deixa de morrer é justamente na morte, pelo menos, a morte que conheço como ser biológico. Quando o corpo morre, a verdade é um absoluto em seu estado final de imutabilidade.
No filme “Três Mundos”, um jovem empresário toma umas a mais numa festa e acaba atropelando um desconhecido. Assustado, foge sem ajudar a vítima. Esse episódio mudaria para sempre a sua vida, a vida da vítima, a vida da família da vítima e até da única testemunha do acidente. Perder-se também é caminho – não foi você quem disse isso, Clarice? Pois no filme, embora só houvesse uma vítima fatal, todos os outros personagens também se perderam a partir de um único acontecimento.
Como costumava dizer Guimarães Rosa, “a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem.” Coragem para que? Para deixar a vida escorrer em seu fluir autopoiético, em seu caminhar que, a nós que só a entendemos como um todo, talvez, próximo de seu findar, nos parece tão trôpego e sem sentido. Coragem para que? Para encarar o morrer em tudo o que nos rodeia, seja em nosso corpo, com as batalhas internas homéricas e sanguinolentas travadas, em sua maioria, sem nos darmos conta, seja no mundo que geramos em nosso viver a cada instante, onde o tempo todo pensamentos morrem, sentimentos morrem, projetos morrem, sonhos morrem, empregos morrem, insetos morrem, plantas morrem, animais morrem, pessoas morrem.
Uma amiga compartilhou recentemente que uma pessoa de seu círculo íntimo de amizades sofreu um acidente e teve parte da perna amputada. Ela atravessava a rua em direção ao seu escritório, como um dia qualquer, quando foi atingida por um carro e acabou sem um pedaço da perna. Diferentemente do personagem do filme, ela foi socorrida pelo motorista. E diferentemente da vítima do filme, ela não morreu. Parte de sua perna morreu. Parte de seus sonhos morreu. Parte de sua vida acabou naquele episódio. E eu me pergunto, Clarice: não seria exatamente assim o viver? Um morrer em partes? Um morrer a miúde que a gente só percebe quando perde um pedaço de si mesmo? Exatamente como um foguete que, depois de cumprir sua missão, vai se despedaçando no caminho de volta para casa.
Belo texto. É isso mesmo, algumas coisas (pessoas, projetos, sentimentos, idéias…) morrem. Porém, muitas vezes, nos quem as matamos. Você é um assassino! Eu, ele… A questão é pronominal e proposital.
Sou grata a ti, Fábio, pela reflexão infinitamente linda.
Vou ficar aqui, parada… um pouco.
Uma delícia de texto! O título, melhor ainda. Fiquei pensando se voltar para casa também é um ciclo…
Espero que seja um ciclo, Alê, porque eu adoraria voltar de novo e de novo e de novo…