Antes de mais nada, quero deixar bem claro que não sou esse super homem que você imagina. Não sou capaz de voar nem de fazer o tempo voltar. Na verdade, não sou sequer capaz de cuidar de meu próprio lixo, que despejo todos os dias em cima de você.
É verdade que você já me viu por aí bradando contra quem atira latinhas de alumínio pela janela do carro ou leva o cachorro pra passear e deixa que o bicho espalhe seu cocô tranqüilamente pela calçada. Fico pê da vida quando vejo uma coisa dessas e, não raras vezes, vou pra cima do infrator para cobrar-lhe uma atitude mais cidadã. É fato também que me meto em tudo quanto é campanha de solidariedade, doando tempo e recursos para iniciativas criadas para ajudar você a ser alguém melhor.
Tudo isso é verdade, eu confesso. Mas é verdade também – e é bom que você saiba – que não é isso o que eu faço a maior parte do tempo. Pelo contrário, na maior parte do tempo costumo fazer o que a maioria das pessoas fazem – as mesmas pessoas que, muitas vezes, me pego criticando.
Quando acordo, não tomo um banho de cinco minutos, mesmo que eu saiba que a água é um bem valioso. Uso como desculpa que a água demora para esquentar e deixo dezenas de litros desse líquido precioso irem direto para o ralo.
Ao me dirigir para o trabalho, vou sozinho de carro – carro a diesel! -, ao invés de procurar outra alternativa como a carona com um amigo ou o transporte público. A desculpa é que não há transporte público decente e amigos, bem, ficaria na dependência do horário deles, e eu não sou uma pessoa de depender de ninguém.
No trabalho, raramente desligo as luzes quando saio de minha sala. E desligar o monitor do computador, então, é algo que só faço na hora de ir embora. A desculpa aqui é fácil: sabe como é que é, trabalho muito, tenho inúmeras tarefas todos os dias e acabo, portanto, me esquecendo deste pequeno detalhe.
Embora use minha canequinha de porcelana para tomar água durante o dia, prefiro materiais descartáveis, especialmente, o plástico, que dispensam a necessidade de serem lavados. Usou, sujou? Basta jogar no lixo. O mesmo vale para as compras do supermercado, que embalo em sacos plásticos – e até dou um jeito de pegar uns sacos a mais, para poder usá-los como lixinho. Desculpe-me, mas com esta vida moderna, comodidade é tudo.
Aliás, não sou do tipo que vai ao supermercado para comprar só o necessário. Sou mortalmente atraído pelas vistosas ofertas de gôndolas luminosas como criança em uma loja de brinquedo. E quando faço uma refeição, raramente limpo o prato, deixando sempre restos de comida. Quem sabe, eu esteja ajudando alguém que possa vasculhar meu lixo? Boa desculpa essa, né?
Bem, no fundo, eu sei que nenhuma dessas desculpas é boa o suficiente. Sei que nada justifica o jeito como eu tenho te tratado. Sei que é você quem me dá o alimento, o ar que eu respiro, o sol que me aquece, a chuva que me refresca, o solo onde eu faço o meu caminho.
Sei que, sem você, eu não seria ninguém, ou melhor, eu nem estaria vivo. Mas é que não nasci pássaro ou cobra ou leão ou elefante ou barata ou jacaré ou peixe ou qualquer outro bicho que não seja o bicho homem, para entender, sem precisar que seja explicado, o quanto você precisa ser cuidada para continuar forte e linda e, assim, deixar que todos os bichos continuem vivendo em sua casa. Também não nasci árvore ou pedra ou água ou vento ou fogo ou qualquer outro elemento presente na natureza, para viver em harmonia com você.
Nasci homem, só conheço a conquista e a destruição. Sou um bicho criança, que não sabe o que é crescer e, por isso, só pensa em satisfazer a si mesmo, custe o que custar.
Por favor, não entenda essa carta como um simples desabafo. É mais do que isso. É meu testamento. É meu último ato antes de me despedir de ti, posto que o fim de nossa relação se aproxima. Não, não precisa chorar. Sei que você está gravemente doente e sou corroído pelo remorso ao ter consciência de que fui em quem lhe deixou assim. Mas é que, sem você, não conseguirei viver e, antes de partir, queria que você soubesse que lamento muito todo o mal que lhe causei. Rezo para que um dia a gente volte a se encontrar e, quem sabe, ao invés de um homem, eu renasça borboleta. Porque foi assim que Cecília Meireles, um bicho mulher que sabia das coisas, descreveu a borboleta…
“No mistério do sem-fim
equilibra-se um planeta.
E, no planeta, um jardim,
e, no jardim, um canteiro;
no canteiro, uma violeta,
e, sobre ela, o dia inteiro;
entre o planeta e o sem-fim,
a asa de uma borboleta.”
Que tapa na cara, que peso na consciência, que chacoalhão na alma!!! rsrsrs
Sem comentários…
Só arrependimentos pelas sacolinhas de mercado, que eu também pego! rsrsrs
Parabéns pelo texto!
O problema, cara Vi, é que, na maioria das vezes, ficamos com vergonha de nossas limiitações, e não há como resolvê-las se não as encararmos de frente e, de preferência, com um pouco de humor.
Obrigado pelo comentário.
Fabio