Viver na dualidade é não viver

domingo, 22 novembro 2009, 18:57 | | 1 comentário
Postado por Fábio Betti 

Aproveitando um momento de agenda tranqüila, resolvi fazer tudo o que precisava a pé – ir ao banco, ao supermercado, fechar a matrícula das crianças na escola, passar na farmácia. Apesar do suadouro, fui tomado de um prazer incrível, o prazer de efetuar tarefas simples, com um mínimo de pressão intelectual. Há anos liderando pessoas e acostumado a ser o centro das atenções, sinto que eu havia perdido a noção da realidade das tarefas operacionais do cotidiano. Essa separação entre o “intelectual” e o “trabalhador braçal” aflorou uma questão que é crucial em minha vida e, possivelmente, também esteja presente no viver da maior parte das pessoas que eu conheço: o eterno conflito de um viver sempre dividido e em sofrimento.

Desde crianças, aprendemos que viver é viver dividido. Certo ou errado. Menino ou menina. Estudar ou brincar. A partir de minha própria experiência e do convite que fiz a alguns amigos que me acompanham no Twitter, resolvi construir uma pequena lista de dilemas que ou nós mesmos criamos ou foram criados por outros e os aceitamos como expressão da verdade – dilemas que, mesmo quando causam um certo alívio ou, até mesmo, uma espécie de tênue sensação de segurança, nos estimulam a viver eternamente separados, desintegrados do outro e do mundo a nossa volta. Espero que essa tentativa de explicitá-los amplie um pouco nossa consciência em direção a uma maior aceitação da dualidade natural de nosso viver, encarando-a da forma correta, ou seja, como sinônimo de “e” e “ambos” e não de “ou”.

Ou você constrói uma empresa lucrativa ou uma empresa voltada para as pessoas. Enquanto essa miopia empresarial predominar nas organizações, pessoas continuarão sendo tratadas como “recursos humanos”, medidos, controlados e substituíveis como os demais recursos da empresa. O problema é que o ser humano condicionado a viver como máquina executa, como uma máquina, funções e não é mais capaz, como um ser humano, de criar e inovar, condições sine qua non para a sustentabilidade do modelo econômico vigente.

Ou você coça o saco em público e se refere às mulheres como pedaços de carne ou é sensível demais a ponto de questionarem sua masculinidade. Raros são os que têm coragem de assumir, mas basta uma jovem vestir uma roupa provocante e sair rebolando para que o machismo que nos domina exploda na forma de barbárie coletiva. “Gostosa! Puta!” Grita a galera “letrada” da universidade enquanto a moça da mini-saia rosa convida o preconceito secular de nossa cultura patriarcal a mostrar suas garras.

Ou você é sapato ou é capacho. Ou você mata ou você come. Ou você é caça ou é caçador. Se todas as pessoas acreditarem mesmo nisso e viverem de acordo com essa crença, quem estará lhe protegendo do outro enquanto você estiver dormindo? Não há sossego possível para quem acredita que o mundo é uma selva e a vida é explicada por um mero dilema entre matar ou morrer.

Ou você vence ou você não tem valor algum. Não se costuma fazer grandes homenagens aos segundos colocados. Rubens Barrichelo? Aposto que a primeira palavra que lhe veio à mente é “perdedor”. Estamos tão condicionados pela crença de que só o primeiro lugar importa, que nos alienamos completamente de qualquer outra evidência de vitória.

Ou você tem razão ou o outro é que tem. Ou o outro entende (e aceita) o que eu digo ou ele não me escuta. “O inferno são os outros”, já dizia Sartre. Enquanto acreditarmos nisso, seremos meros joguetes nas mãos dos outros, dependentes de seu julgamento, de sua validação e aceitação. Agimos como se o outro não fosse, verdadeiramente, um outro, mas extensão de nós mesmos e, por isso, esperamos que ele nos entenda, de preferência, adivinhando nossos pensamentos e anseios mais profundos, desejos, muitas vezes, que nem nós mesmos conseguimos acessar.

Ou você ganha dinheiro ou você é feliz. Como ser feliz sem morar num bairro bacana, sem ter uma família Doriana, sem um carro novo na garagem, andar com roupas de grife, colecionar diplomas e honrarias e circular por lugares da moda? Ou tenho tudo ou não tenho nada. Aprendemos que a felicidade é uma questão de ter – e não de ser – e, assim, nos lançamos numa luta sem fim para ter tudo o que nos vendem como caminho obrigatório para a felicidade. Achamos graça quando lemos nos livros de História sobre a venda de cartas de indulgência na Idade Média como passaporte ao paraíso, quando, dia após dia, almejamos ardentemente qualquer coisa que pareça nos transportar deste mundo de sofrimento para qualquer forma de paraíso.

Aliás, ou você atinge o topo da pirâmide até os 40 anos de idade ou você é um derrotado. 45 anos e nem gerente se transformou? Já era! E se chegar lá, aos 60 você já será considerado fim de linha, candidato à aposentadoria compulsória na forma de um bilhete azul ou, pior, no ostracismo dos projetos especiais ou das consultorias pós-desligamento – esmolas para encobrir a crença estúpida de que os mais velhos só servem para entreter os netos, ir a bailes da terceiridade e jogar dominó em praça pública. E ninguém parece ter coragem de escancarar a insanidade desse julgamento, ignorando estupidamente que, quanto mais experiências uma pessoa tem na vida, mais chances ela tem de aprender.

Ou você joga o jogo ou segue seus valores. Praticamente, todos as pessoas que conheço dizem ser impossível sobreviver em uma empresa sem praticar jogos políticos. Muitos chegam a desenvolver mecanismos de anestesia, para que, mesmo trapaceando, sintam-se íntegros com seus valores para inglês ver. E outros simplesmente conformam-se, colocando-se no papel de “vítimas do sistema”. Recentemente, ouvi de um desses amigos que sou um criador de conflitos. Respondi que apenas torno-os conscientes, ao que outro amigo comentou: isso é o que faz um criador de conflitos, torna-os conscientes.

Casas decimais, centesimais, milesimais e “enesimais”, só nas aulas de matemática. Na vida “real”, é zero ou um. Ou você é do bem ou você é do mal. E, pior, você é do bem ou é do mal, muitas vezes, dependendo de um único ato seu. Basta um escorregão para você ter toda a sua vida – passada e a futura – julgada e devidamente rotulada.

Ou você é politicamente correto ou você não presta. Aqui mesmo nesse blog (no post “Anestesia, eu quero uma pra viver”), confessei que andei comprando DVDs piratas. Alguns amigos se mostraram horrorizados com essa “atitude condenável”. O que, talvez, nem lhes passe pela cabeça na hora em que me julgam é o quanto eles próprios também se julgam ou são julgados, pois se há alguém na face da Terra que não faça nada condenável que jogue a primeira pedra. Ocorre o mesmo quando castigamos ao mentiroso. É um convite para que ele repita a atitude, sofisticando seu mecanismo de defesa para não ser pego novamente.

Aonde esse sistema de crenças e valores baseado na separatividade geral e irrestrita tem nos levado? Basta olhar a nossa volta. Quando acontece um tsunami na Ásia, é como se estivéssemos assistindo a um filme de ficção. O aquecimento global nos parece uma teoria científica e, como não somos cientistas, não nos sentimos parte do problema. A favela ao lado, a criança sendo explorada na rua também não são nosso problema. Sentimo-nos separados deles. Somos os bons, eles, os maus. Somos os que se esforçam e são recompensados, eles são os vagabundos e preguiçosos.

Agimos como se, de fato, fôssemos separados do mundo. Há um mundo lá fora e há nós. Daí, quando um de nós, de repente se vê engolido por uma onda gigante ou é atingido por uma bala perdida, nos voltamos para as autoridades, cobramos medidas urgentes. Desperdiçamos a oportunidade de ampliarmos nossa consciência e nos vermos como parte das coisas e não apartados delas.

Dualismo é a teoria que explica que tudo é baseado na coexistência de dois poderes ou princípios. O homem não é possível sem a mulher, a luz sem as trevas, o bem sem o mal. Enquanto escolhermos viver na ignorância dessa verdade incontestável, lutando contra o fluxo natural da vida, continuaremos pagando o preço mais alto que alguém pode arcar, o preço de não viver.

Um comentário para “Viver na dualidade é não viver”

  • Francisca disse:

    Apesar de concordar com a citação exemplar referida das catástrofes naturais «Agimos como se, de fato, fôssemos separados do mundo. Há um mundo lá fora e há nós.». Tenho de intervir que o conceito de dualidade aqui referido é um conceito superficial no meu ponto de vista. A dualidade é também espiritual, daí o entendimento individual da perceção das ocorrências.. E depois é que virá as superficialidades. A dualidade existe. Mas não deixa de ser paradoxalmente abstrata.

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