Paixão e inflexibilidade

sexta-feira, 08 janeiro 2010, 21:59 | | Nenhum comentário
Postado por Fábio Betti 

Em um curto espaço de tempo, recebi três ou quatro mensagens semelhantes de pessoas diferentes. Elas falavam sobre minha inflexibilidade.

Minha primeira reação foi de repúdio, de negação mesmo. Quem eram elas para me acusar de inflexível? Uma pessoa que discute a relação em praticamente todos os âmbitos de sua vida e que não tem pudor de se desnudar, escancarando seus sentimentos, pode ser considerada inflexível?

Um dos maiores ensinamentos que tive na vida é que cada pessoa constrói, de verdade, seu próprio mundo. Constrói seu mundo a partir do que vê, ou melhor, do que as lentes que ela usa permitem que ela veja – lentes exclusivas, que mostram um mundo exclusivo, único mesmo. Algumas dessas lentes me vêem como inflexível. Se é assim que elas me vêem, paciência, é como elas me vêem e sobre isso eu não tenho qualquer poder ou controle.

Então, depois da revolta, veio a aceitação , que começou contaminada pela culpa para, em seguida, transformar-se naquele tipo de aceitação resignada que já observei em algumas pessoas que lutam, lutam, lutam e, de repente, sem qualquer explicação, abrem mão de continuar lutando e, simplesmente, se entregam ao fluir dos acontecimentos. A partir desse ponto, me senti mais leve para poder me perguntar de onde vinha essa inflexibilidade percebida pelo outro, e, então, escolher se eu a queria ou não para mim.

E, assim, o que antes soava como uma crítica recebeu um novo significado: um convite para eu olhar para a imagem que eu emitia para o outro. Só que eu não conseguia identificar nessa imagem a inflexibilidade sobre a qual as pessoas se referiam. Ao invés dela, no entanto, eu podia ver outra coisa igualmente poderosa, uma força igualmente indomável: a paixão. Aí de repente entendi que o que os outros chamavam em mim de inflexibilidade, eu nomeava como paixão. Quando olho para minha vida como o trailler de um filme, observo, de fato, que, me apaixonei perdidamente por todas as mulheres com as quais me relacionei, cultivei loucas e incondicionais paixões por brinquedos, lugares, livros, filmes, esportes.

Quando me culpei pela inflexibilidade observada em mim pelo outro, tentei me redimir, pedindo aos amigos que não encarassem meus momentos de fúria como algo pessoal. Minha briga é com as idéias e não com as pessoas. Acima de tudo, sou apaixonado por idéias – idéias que fazem meu mundo ter sentido. Defendo as idéias com o mesmo vigor de alguém que defende a pessoa amada. E, com a mesma facilidade que as paixões se vão, minhas idéias também mudam. Assim, me pego defendendo novas idéias, apegado de novo, apaixonado de novo, num ciclo aparentemente sem fim.

E aí me pergunto: é errado isso? É errado ser praticamente um escravo das paixões quando todos os gurus, todos os seres iluminados desse planeta parecem pregar justamente o contrário: o desapego, abrindo mão de tudo, especialmente, de nossas paixões?

Como escrevi no inicio desse texto, depois de muito lutar, quando me entrego à corrente e consigo dar um passo ao lado, vejo uma pessoa apaixonada e não julgo isso nem certo nem errado. Sinto a paixão como minha própria natureza, como parte do que sou e a forma como opero o meu viver. Se a paixão, às vezes, me afasta do outro, nos colocando em campos opostos, ela também permite que eu explicite meus sentimentos, minhas angústias, minhas dores e, sobretudo, meus ideais, meus valores.

Por exemplo, assim que comecei a elaborar este post, liguei a televisão e passei a acompanhar “I am because we are”, documentário escrito e produzido por Madonna sobre os órfãos de Malauí, na África. Naquele momento, não me importava em nada saber que a crítica torceu o nariz para o filme. Para mim, o importante mesmo era tomar contato com uma realidade que, até aquele instante, eu ignorava e que, de uma hora para outra, me tocou profundamente. Tanto é que, no espaço de tempo de um estalar de dedos, comecei a pensar em algumas maneiras para que outras pessoas também se sentissem tocadas pela situação daquelas crianças, e me vi compilando dados – “chefes de famílias com 12 anos de idade”, “a garotinha orfã de 9 anos responsável por cuidar de outras 3 crianças menores do que ela”, “dois milhões e meio de crianças órfãs com AIDS.” Por um triz, não mudei o tema do meu post por causa do documentário. Afinal, a África é logo ali, do outro lado do oceano. É banhada pelas mesmas águas nas quais nos refrescamos. Mesmo assim, fingimos que ela está longe demais – praticamente, é um outro mundo, longínquo, inacessível, sobre o qual não temos qualquer responsabilidade e que, definitivamente, não nos diz respeito.

Lá estava eu de novo deixando minha natureza se manifestar, de maneira apaixonada ou inflexível, dependendo das lentes de cada um. E se essa reflexão-confissão resolve ou não a questão para quem se sente incomodado com meu modo de ser, não faço a menor idéia. Só sei que só posso ser eu mesmo, e nada mais.

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