Nos esquecemos de nós

sexta-feira, 15 janeiro 2010, 19:53 | | Nenhum comentário
Postado por Fábio Betti 

Depois de assistir ao comentado “Avatar” e de passar o efeito de deslumbramento causado pela riqueza dos efeitos e cores presentes no filme, sobreveio uma sensação estranha, uma tristeza difícil de nomear e que, mais tarde, descobri que estava relacionada à constatação de que estamos a cada dia mais perdidos de nós mesmos.

Um dia após assistir a “I am because you are”, o documentário produzido, escrito e narrado pela cantora Madonna sobre o flagelo da AIDS que se abate sobre 2,5 milhões de crianças na África, resolvi encarar as quase 3 horas de “Avatar”, a história sobre uma civilização – Pandora – que vive em total equilíbrio com a natureza, até que a ganância do ser humano chega trazendo desarmonia e destruição.

Esses dois filmes, a princípio, diferentes sob praticamente qualquer ângulo em que sejam analisados, foram aos poucos se aproximando um do outro como a teia construída pela aranha quando estabelece a ponte entre duas árvores. Eles estão tão interligados quanto eu a você. E, em nosso caso particular, nós não estamos ligados um ao outro apenas por este texto. Ambos falamos a mesma língua, de alguma forma, temos interesses comuns, como, por exemplo, a intenção de aprendermos mais sobre nossos relacionamentos e, o que nos torna ainda mais próximos, somos ambos humanos. Vivemos na linguagem e na necessidade de amar e ser amados.

Habitamos o mesmo planeta, eu, você, James Cameron, Madonna, as crianças da África e do Brasil. Dependemos de recursos naturais como água e oxigênio para sobreviver. Dependemos da fertilidade da terra, da força dos ventos, dos movimentos das marés. Dependemos da capacidade de reprodução das espécies vegetais e animais para ter o alimento que mantém nosso sistema autopoiético (auto-produção) em funcionamento.

Sem isso, não estaríamos vivos. E, no entanto, agimos como se fôssemos seres independentes, como se estivéssemos vendo a paisagem da janela de um trem ou como um filme projetado numa tela. Agimos como espectadores e não como atores que, de fato, dividem o mesmo palco.

Assim, podemos poluir à vontade nossos rios, nosso ar e nosso solo. Extraímos à vontade as riquezas naturais, sem nos preocupar de verdade em repô-las. Agimos como se nada tivéssemos a ver com o aquecimento global ou com a miséria ao lado, a ponto de comemorarmos quando o índice de desmatamento diminui na Amazônia. Como assim, “diminui”? Já não se sabe o suficiente sobre os riscos do desmatamento? Como é possível, então, qualquer comemoração quando se continuam destruindo florestas e crianças morrendo de fome logo ali, bem ao lado de nossa confortável casa?

Fingimos que estamos desconectados uns dos outros, cada um levando sua própria vida, de maneira totalmente autônoma. Escolhemos quem é necessário para o nosso viver, colocando todos os demais na lista da indiferença.

No entanto, quando morremos, somos todos comidos por vermes, nossos restos materiais se misturando igualmente na terra, onde não existe qualquer diferença entre um brasileiro e um africano, entre um judeu e um muçulmano, entre ricos e pobres, entre homens e mulheres, entre adultos e crianças, entre culpados e inocentes.

Uma palavra agressiva pode estragar o dia de alguém, assim como um abraço pode provocar uma alegria contagiante. E, mesmo assim, continuamos nos pensando desconectados. Se temos diplomas e poder, ainda temos a pachorra de impor nossa visão da realidade ao outro, como se nossa condição nos desse a propriedade da verdade. Nossa condição, qualquer que seja ela, é transitória – até pode durar por toda a nossa vida, mas o que é esse espaço de tempo perto da trajetória do planeta ou do movimento das estrelas?

Como os cegos de Saramago, nos tornamos cegos em terra de cegos. Perdemos as referências do viver em harmonia com o outro e, portanto, conosco mesmo. Nos esquecemos de nossa própria história como seres vivos de uma mesma casa, de uma mesma família. Quão longe podemos ir sem honrarmos nossas próprias origens, sem respeitarmos a carne de que somos feitos e o corpo que formamos uns com os outros, numa rede totalmente interligada e cujo fim está tão longe de nossos olhos quanto de nosso entendimento?

Minha esperança e também meu alento é que, como a Pandora de “Avatar”, a rede planetária também irá se reacomodar para continuar existindo. Enquanto isso, espero sinceramente que, todos os dias, mais e mais pessoas acordem desse torpor que as fazem esquecer-se de si mesmas. Quando nos esquecemos de nós, cultivamos o medo e a solidão e não o amor, essa forma de viver que tanto almejamos e que é facilmente experimentada toda vez que nos conectamos verdadeiramente uns com os outros.

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